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Crítica | O Sétimo Selo

por Marcelo Sobrinho
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Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor.
Romanos, 6:23

À beira do mar, em uma terra erma e sobre grandes rochas, o cavaleiro Antonius Block encontra-se deitado. Seu olhar perde-se, dirigido ao céu. Levanta-se e caminha um pouco em direção ao oceano. A seguir, ajoelha-se de costas para o horizonte, unindo as mãos em prece, enquanto o sol, ao fundo, anuncia a alvorada de mais um dia. A Morte, vestida de preto, chega em seguida com seu caminhar funesto. A cena de abertura de O Sétimo Selo revela muito do que é o cinema de Ingmar Bergman. Como diretor de teatro, sua produção é até maior do que como cineasta. Mas que não haja equívocos: seu filme de 1957 foi sua provação definitiva como diretor de cinema. Seus enquadramentos inteligentes e seguros logo na introdução da obra não deixam nenhuma dúvida a esse respeito. Antonius Block procura o divino com sol nascente em segundo plano, simbolizando sua busca pela fé.

Mas Ingmar Bergman saiu de moda. Também não há dúvidas quanto a isso. Mesmo em seu país, o diretor sueco não consegue mais rejuvenescer seu público. Bergman também tem comédias, que inclusive conquistaram profundamente diretores como Woody Allen, hoje um dos cineastas mais venerados e com um séquito que aplaude cegamente qualquer bobagem que o norte-americano leve às telas quase que anualmente. Mas é de Allen uma das frases sobre Bergman que melhor explicam a popularidade decrescente do sueco entre as novas gerações: “Bergman sempre fazia perguntas difíceis”. O diretor escandinavo não se preocupava com as bilheterias de seus filmes. Ele apenas convidava o público para o exorcismo de seus próprios demônios e para a expiação de suas próprias culpas. Era humano, demasiado humano. Nunca escondeu isso em seus filmes e talvez seja essa demasia que afaste tanto as novas gerações. “Viver não é coragem, saber que se vive é coragem”, escreve Clarice Lispector em seu maravilhoso A Paixão Segundo G. H. E Bergman é essa aterradora consciência.

O protagonista de O Sétimo Selo volta das Cruzadas e encontra seu país assolado pela fome, pela peste negra e pela morte. Block encontra cadáveres consumidos pela peste por toda a parte. O personagem de Max von Sydow questiona a existência de Deus, afinal, como pode algo infinitamente bom e perfeito ter criado um mundo cheio de dor, pestilência e desgraça? Block procura por Deus em todos os lugares, sequioso de qualquer sinal de sua existência. Em uma capela, olha a figura de Cristo crucificado antes do conhecidíssimo diálogo com a Morte – Cristo engrandecido e glorificado pelo contra-plongée bergmaniano e Block insignificante e apequenado por seu plongée. Sorri como um servo que se ampara na grandeza de seu senhor. No famoso diálogo a seguir, o cavaleiro confessa sua dúvida de olhos baixos, cravados no mundo terreno e órfãos de um Deus que insiste em lhe recusar vestígios.

Antonius Block vive o que Jean-Paul Sartre chamava de má-fé, isto é, o ato deliberado de negar a própria existência enquanto predecessora de uma essência. O protagonista sente-se desamparado pela inexistência de uma divindade, conscientiza-se da solidão em que vive em um mundo onde tudo é matéria e o espiritual nega-se a surgir. Perceba que o filme é arredio a quaisquer elementos metafísicos ou sobrenaturais. A própria morte é corpórea, tem rosto, fala e caminha sobre o mesmo solo que os humanos. Ainda assim, o cavaleiro ímpio de Bergman recusa-se a crer na aleatoriedade do mundo e em sua contingência. Seu olhar de terror para a mulher levada à fogueira, por acusação de estar possuída por demônios, é revelador. A mulher dirige seus olhos arregalados para um ponto enigmático. “O que ela vê? Quem receberá sua alma? Os anjos, Deus, o Diabo ou simplesmente o vazio?”, pergunta para Antonius Block o seu escudeiro Jons. Eis a resposta aturdida do primeiro: “Não pode ser o vazio. Não pode!”.

Se o protagonista tem sua alma corroída pela dúvida, Bergman trabalha o oposto na cena dos flagelantes. Sua procissão interrompe o espetáculo dos artistas mambembes, transformando a cena em um cortejo terrificante de homens e mulheres esquálidos e decrépitos que se chicoteiam, andando aos cambaleios e colocando à prova os limites da carne. Se o protagonista de O Sétimo Selo não encontra sinais do supra-terreno em nenhuma parte, os flagelantes o encontram na punição e na culpa. O diretor sueco representa aqui, com sua câmera baixa, gerando perturbação ainda maior, a ideia de que a peste era o castigo de um Deus verdugo, que punia os homens por sua natureza pecadora. Na ideia de purificação do espírito por meio do flagelo do corpo, aqueles homens e mulheres encontravam o amparo de um Deus que se revelava a eles, mesmo que para exigir a purgação dos homens. A cena dá a Antonius Block a noção de sua orfandade – para ele, não há sublimação nem no castigo.

A emblemática cena em que ele joga xadrez com a Morte parece desafiar exatamente essa ideia presente na cena dos flagelantes. Se a peste negra, em sua brutal letalidade, é alçada à condição de ato divino, na verdade a própria morte também o é. A morte chega para expurgar a alma dos que pecaram e não conseguiram purificar-se em vida. Block desafia o controle de uma divindade que teima em se esconder sobre o próprio destino final dos homens. Se ele vencer a partida, ele viverá – eis o acordo. Não se trata de nenhuma aspiração à eternidade, vale ressaltar. O questionamento que surge pode ser mais bem enunciado do seguinte modo – se realmente estamos sozinhos e desamparados neste vale de lágrimas, não nos caberia o governo de nosso próprio destino, incluindo o seu passo mais fatal e derradeiro?

Uma batida à porta lhe devolve, por fim, seu sentimento de dúvida e temor. Enquanto todos se defrontam com seu visitante final (relembro aqui que Bergman não é metafórico, mas corporifica seu discurso), novamente Block une as mãos em oração, esperando as respostas que nunca vieram. O diretor silencia todas elas inclusive para o público, à exceção de apenas uma. A resposta bergmaniana em O Sétimo Selo é bastante clara. Se o seu personagem principal busca respostas para as malignidades terrenas em além-mundos e não as encontra, talvez nossa única esperança seja mesmo a arte como redentora dos homens. Não à toa, a cena mais luminosa de todo o filme é aquela que mostra os dois artistas mambembes sendo poupados pela Morte. Ingmar Bergman, que dizia assumidamente temer as coisas da vida, nos revela isso como mera suspeita. Mas a suspeita de um dos maiores artistas do século XX.

O Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet) – Suécia, 1957
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Anders Ek, Bengt Ekerot, Berto Anderberg, Bibi Anderson, Gunnal Lindblom, Gunnar Björnstrand, Inga Gill, Inga Landgre, Maud Hansson, Max von Sydow, Nils Pope
Duração: 96 min.

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