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Crítica | O Silêncio dos Inocentes, de Thomas Harris

por Leonardo Campos
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A segunda incursão do psicopata requintado Hannibal Lecter é a melhor, tanto no cinema quanto na literatura. Apesar do bom desenvolvimento de dados biográficos em algumas passagens interessantes de Hannibal, romance lançado posteriormente, bem como o preambular encontro do personagem com Will Graham, também agente do FBI, o responsável por aprisiona-lo em Dragão Vermelho, O Silêncio dos Inocentes goza dos privilégios de um escritor numa fase criativa aguçada, responsável por diálogos mais intensos e funcionais, equilíbrio narrativo e o estabelecimento de uma atmosfera magnética com a química absurda entre o antagonista e Clarice Starling, a agente designada para a resolução de um novo caso investigativo, desta vez, sobre um psicopata que aniquila mulheres em circunstâncias bem específicas. Iniciante e cheia de garra, Starling desce literalmente aos infernos da prisão de segurança máxima para o seu primeiro de muitos encontros com Hannibal Lecter, aqui na função narrativa de auxiliar na resolução do caso, mas também ironicamente um mentor, e, talvez terapeuta, pois cada encontro parece uma sessão de análise.

Originalmente lançado em 1988, O Silêncio dos Inocentes ganhou uma versão mais recente no setor editorial brasileiro, publicada em 2019, com prefácios de Thomas Harris e do especialista Raphael Montes, o primeiro mais interessante por ser parte da própria fonte criadora do universo. Ao longo de suas 360 páginas, traduzidas com eficiência por Antonio Gonçalves Penna, temos mais uma vez o agente Jack Crawford a realizar um patrulhamento para uma série de novos assassinatos que têm deixado as pessoas aterrorizadas, num romance rico em descrições. Ele confia em Clarice Starling e a designa para a missão de entrevistar Hannibal Lecter, um homem cheio de classe e astúcia, amante das artes visuais e da música erudita, mas também um assassino conhecido por matar as suas vítimas e se alimentar delas, sempre acompanhada de um bom vinho e temperos sofisticados. Como reza a cartilha do gênero policial, nada como uma mente psicopata para conhecer outra, não é mesmo? É com esse direcionamento que a renomada agente do FBI desce aos corredores macabros da instituição, tendo em vista tirar informações do Dr. Lecter.

O jogo, desde o início, é declarado por todos como bastante complexo. Jack Crawford avisa dos perigos de enfrenta-lo e pede cautela por parte da agente. Frederick Chion, ser abjeto já descrito como alguém de péssima índole no romance anterior também delineia o nível de penetração psicológica do Dr. Lecter, sendo a pessoa que lhe entrega as primeiras recomendações para ter acesso ao enigmático personagem. Barney, personagem que ganha algum destaque na história e em sua continuação, lhe questiona se está tudo bem e ressalta a carga pesada que é circular pelo local. Forte e firme, Clarice Starling desce ao local focada no devido cumprimento da missão, uma chance de destacar-se no FBI, um espaço que tal como contemplaremos no avanço da história, é repleto de relações tóxicas misóginas. Ela é uma mulher decidida, mas em seu primeiro encontro com Dr. Lecter, colocará várias de suas convicções em questionamento. Para ajudar na interpretação do caso, o prisioneiro que possui diploma em Medicina e Psiquiatria estabelece um trato com a jovem. A cada informação, ela precisa falar algo de si para que ele a interprete.

Vaidoso, esse homem distinto largamente conhecido pelo desempenho de Anthony Hopkins no cinema é mais vulgar e corriqueiro em suas dimensões literárias. Fala palavrões, entoa com sarcasmo algumas piadas com carga sexual para a agente e atordoa com suas perguntas invasivas. Seu papel de monstro, também tratado por alguns estudos como ogro contemporâneo, está bem destacado na história, mas há outro ponto interessante no desenvolvimento de sua personalidade, pois mesmo tendo o histórico que possui, Hannibal Lecter será peça importantíssima na condução da investigação de Clarice Starling, ao contribuir com dados e interpretações próprias de sua área que a ajudam na eliminação do mal-estar representado por James Gumb, intitulado publicamente de Buffalo Bill, psicopata que tem em sua coleção de vítimas, mulheres com sobrepeso, ideais para a roupa de pele costurada a cada assassinato aleatório em um ponto dos Estados Unidos. Thomas Harris flerta com o transexualismo e traz para o centro da narrativa, uma releitura de Ed Gein, o psicopata de Wisconsin que também inspirou Norman Bates e Leatherface, de Psicose e O Massacre da Serra Elétrica, respectivamente.

Tanto os elementos memorialísticos quanto as situações realistas assombram os personagens e consequentemente, os leitores. Ao passo que a narrativa avança, mesmo que algumas subtramas e pequenos capítulos que nada acrescentam surjam como dispersões, O Silêncio dos Inocentes adensa nos conflitos pessoais de Jack Crawford, mais delineado aqui, haja vista a sua presença apenas funcional em Dragão Vermelho, bem como já mencionado, torna a figura de Hannibal Lecter mais destacada para impulsionar o seu melhor personagem, a agente do FBI Starling, mulher que mergulha no passado assustador, nas lembranças dos cordeiros mortos na fazenda de seus tios, além da rememoração dolorosa do falecimento de seu pai. São temas que envolvem luto, relações familiares, formação de caráter e outros tópicos psicológicos importantes para tornar o conteúdo do romance algo mais denso que apenas uma história policial investigativa genérica para momentos diletantes fugazes. Diferente de Will Graham, a agente Starling se aproxima mais do perfil de suas vítimas pelo fato destas serem mulheres, acossadas por alguém que usa de sua identidade social masculina para imprimir força e massacrá-las para seu projeto de cobiça.

James Gumb, vulgo Buffalo Bill, deseja ser o que elas são, isto é, mulheres. Essa ausência lhe traz sérios danos psicológicos, comprovados nos documentos que registram a negativa dos especialistas em sua tentativa de transição. Agressivo nos atendimentos, Bill teve a sua chance negada e desfere a sua ira nas mulheres mortas de maneira peculiar. Ele toma uma parte de sua pele para costurar o traje ao estilo Ed Gein e deixa uma mariposa rara no interior das suas vítimas, um ser que ele coleciona em sua casa macabra, bicho que representa bem o seu modo de operação noturno. Com perfis específicos, as mulheres já ceifadas servem de base para Clarice Starling conduzir a sua investigação, desde a ida na casa destas pessoas aos interrogatórios, análise de cadáveres, sessões com o Dr. Lecter e pesquisas em bibliotecas e arquivos da cidade. Na capa de algumas edições, bem como na versão brasileira lida, temos a mariposa na capa, criatura que tem o interior parecido com a imagem de uma caveira, associação com a enigmática obra de Salvador Dalí e do fotógrafo Philippe Halsman, intitulada Women Forming a Skull, numa das tantas referências de Thomas Harris ao mundo das artes, parte de seu ótimo faro para pesquisa.

O desfecho não chega a ser arrastado como em Dragão Vermelho, mais amplo do que deveria, mas ainda assim, acrescenta um conteúdo em excesso para a quantidade de emoção gerenciada ao longo de suas páginas já suficientemente intensas até o abatimento de Buffalo Bill e a conquista de Clarice Starling no FBI. Por meio de uma carta, Hannibal informa que a sua fuga foi bem arquitetada e que a agente não tente ficar em seu encalço. Ela é para ele alguém para admiração, diferente de Chilton, alguém que é observado como presa para a sua possível próxima caça. Desprezível, o gerenciador da prisão grava as sessões de Starling com o canibal para vende-las para o tabloide onde o falecido jornalista do romance anterior expunha as informações do Fada do Dente, até o dia em que caiu nas malhas macabras do assassino e se tornou uma imensa bola de fogo antes torturada física e psicologicamente. O destino de Chilton não é explicitado e no livro seguinte, permanece na penumbra, pois não há certezas em torno de seu desaparecimento. Barney também recebe agradecimentos por tê-lo tratado com zelo durante a sua estadia na prisão, alguém que pode dormir bem as suas noites de sono, sem temer a presença do Dr. Lecter como um possível algoz numa situação futura. E assim a história se encerra, satisfatória, continuada literariamente em 1999, mais de uma década após a publicação de O Silêncio dos Inocentes.

O Silêncio dos Inocentes (The Silence of The Lambs/Estados Unidos, 1988)
Autor: Thomas Harris
Tradução: Antonio Gonçalves Penna
Editora no Brasil: BestBolso
Páginas: 392

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