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Crítica | O Som e a Fúria (2014)

por Gabriel Zupiroli
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Adaptar a obra de William Faulkner para o cinema é um trabalho deveras complicado. Não porque uma adaptação deva ser de uma maneira ou de outra, cumprir este ou aquele requisito, pelo contrário: ela é livre para se construir como bem entender. No entanto, uma das formas mais interessantes de adaptação é aquela em que o artista busca compreender como o material original articula a linguagem para, a partir disso, lapidar a sua própria visando criar uma conexão entre ambas. É o que, até certo ponto, James Franco tenta fazer em O Som e a Fúria. Infelizmente, quanto mais envereda por essa tradução de perspectivas, apenas fica mais explícito o quão seu próprio entendimento do romance norte-americano é limitado.

O filme acompanha uma decadente família reminiscente da aristocracia no Sul dos Estados Unidos, no início do século XX. Através de três perspectivas diferentes, expõe para o público as configurações do caótico ambiente familiar e como ele se encaixa em um próprio modelo social que está passando por mudanças. No romance de 1929, é possível compreender diversas dimensões de comentários construídas pelo escritor: uma análise psicológica dos personagens a partir de diferentes focos narrativos; uma perspectiva social acerca da relação entre aqueles sujeitos e a sociedade mudada; um olhar existencial sobre a própria condição de seres humanos; uma visão avançada, para o seu tempo, sobre a questão racial na região, dentre outros assuntos. Na obra de Franco, no entanto, todos estes pontos de vista se esvaem pelos ares. Tudo bem, não é dever do cineasta reproduzir a mesma obra na tela. Entretanto, alguma coisa há de ser transmitida, sendo que no filme não há praticamente nada.

Sejamos justos: nem toda a percepção de Franco é problemática. O esforço de transmitir à tela o experimentalismo visual e até sonoro que Faulkner coloca no romance é mais que visível. O problema reside justamente nas limitações da própria direção. Mas vamos por partes – pois o filme mesmo se divide em três.

A primeira delas se encarrega da narrativa através de Benjy, um dos quatro irmãos, que é retratado como possuindo algum atraso cognitivo. Aqui, Franco procura realizar uma composição que se conecte com a condição do personagem: a história é narrada de maneira desconexa, por meio de uma edição que não segue uma linearidade temporal, uma câmera malabarista e uma trilha sonora que possui um eterno ar de prólogo. Neste sentido, é visível a tentativa da direção de levar ao espectador a sensação de desorientação causada pela perspectiva do personagem. E é aqui que, inclusive, a obra se sai melhor: é o mais próximo que chega de dizer algo, ou seja, de arquitetar a linguagem em função da elaboração discursiva que, porém, apenas esboça adentrar a complexidade da psicologia humana. Aqui é quando Franco formula uma visão acerca da causalidade dos acontecimentos e a transfere para a imagem.

Este movimento, no entanto, dura pouco, visto que a partir de dado momento o diretor se envereda por aquilo que repetirá nas duas partes seguintes: uma formulação vazia que, no máximo das boas intenções, procura traduzir literalmente em tela aquilo que Faulkner esculpe no romance. E é quando Franco erra mais e perde controle sobre sua produção. Durante a narrativa de Quentin, o irmão suicida, o filme passa a se entregar a uma elaboração quase sem sentido, que procura a todo momento se tornar pitoresca sem a vitalidade necessária para isso. Torna-se extremamente deslocada e maçante a maneira de transmitir as ideias, abrindo espaço, inclusive, para uma exposição “filosófica” que apenas afasta a possibilidade de uma comunicação sólida.

Por último, é durante a narrativa de Jason, o irmão bruto, que o controle se perde por completo. Procurando, mais uma vez, desenhar ipsis litteris o que já se encontra trabalhado no romance de Faulkner, a narrativa assume uma perspectiva “tradicional”, que se torna mais esvaziada ainda. Nada do que é apresentado ali possui uma relação de causa e consequência com o restante da obra, transformando o filme em uma bagunça composta de três elaborações radicalmente diferentes sem uma mínima conexão entre si. Está selada, portanto, a tentativa caótica de James Franco de adaptar para o cinema uma obra da qual aparentemente não compreendeu nem os limites básicos.

Como dito anteriormente, uma obra de arte não deve coisa alguma. Não deve ser fiel ao material original, no caso de uma adaptação, e não deve apresentar uma ideia, uma tese a ser defendida. A questão é que mesmo obras que procuram não dizer aparentemente nada possuem em sua forma a transmissão de algo – pois não é, afinal, a função de uma linguagem, comunicar? Filmes abstratos e experimentais, por exemplo, podem soar como que sem sentido ou bagunçados por não ter um discurso concreto a ser diretamente explicitado. No entanto, a própria maneira de transmitir o que está em tela acaba por se tornar a veia discursiva.

O Som e a Fúria de James Franco peca precisamente não no fato de diferir do romance de Faulkner, mas sim em tentar a todo custo traduzir literalmente o que foi exposto no corpo do livro sem propor qualquer ideia minimamente palpável, qualquer visão que não seja a imagem pela imagem como se saída diretamente do material fonte. O que, com certeza, esvazia a adaptação e aniquila qualquer possibilidade de criação de um discurso estético. Por fim, a sensação que fica é a de um filme que não precisaria existir. A obra literária, com sua força, já cumpre o papel suficiente como cânone da literatura mundial. O filme de Franco, por sua vez, fica fadado ao amargo esquecimento. Tentativa e erro.

O Som e a Fúria (The Sound And The Fury) – EUA, 2014
Direção: James Franco
Roteiro: James Franco, Matt Rager
Elenco: James Franco, Ahna O’Reilly, Scott Haze, Jacob Loeb, Joey King, Tim Blake Nelson, Loretta Devine
Duração: 101 min.

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