Philip K. Dick sempre foi associado a realidades alternativas, simulacros e paranoia metafísica, mas O Tempo em Marte é um dos livros em que esses temas aparecem de forma mais “suja”, menos polida, ainda meio presa ao pulp, mas já apontando para a fase mais madura do autor. Aqui não temos grandes conspirações intergalácticas ou agentes secretos viajando no tempo: temos um encanador de sistemas, um garoto autista, um pelego de sindicato, especulação imobiliária e um punhado de colonos tentando transformar um deserto marciano em nova fronteira capitalista. A ficção científica é cenário; o centro do romance está na experiência distorcida do tempo e em como essa distorção revela a crueldade de um sistema colonial em colapso.
A premissa parece simples: Jack Bohlen, técnico que emigra para Marte para “fugir” da esquizofrenia, tenta montar uma vida “normal” com esposa e filho num posto avançado da colônia. Em paralelo, Arnie Kott, chefão de um sindicato, quer lucrar com um grande golpe imobiliário em torno de uma cadeia de montanhas, enquanto descarta os Bleekmen, povo nativo de Marte (de muitas formas, um paralelo para os nativos-americanos), como incômodo descartável. No meio dos dois surge Manfred Steiner, garoto autista cujas perturbações não são “só” um transtorno, mas uma percepção quebrada do fluxo temporal. O que começa como um romance de fronteira, com colonos, sindicatos e minorias oprimidas, rapidamente desliza para uma espécie de pesadelo temporal, em que presente, futuro e alucinação se misturam a ponto de perdermos qualquer certeza sobre o que é “real”.
Um dos aspectos mais interessantes do livro é a forma como Dick aproxima a doença mental da estrutura temporal. O psiquiatra Glaub defende que certas patologias não são apenas “falhas” psíquicas, mas formas diferentes de experimentar o tempo. Em Manfred, isso ganha expressão radical: o garoto vive esmagado por um futuro em ruínas, preso mentalmente numa espécie de asilo-lixão chamado AM-WEB, em que ele se vê velho, paralisado e esquecido. Ele não “sonha” com esse lugar, ele o habita continuamente, como se a linha temporal tivesse quebrado e sua consciência estivesse permanentemente conectada a esse ponto. Já Jack, com seu histórico de esquizofrenia, teme que a proximidade com Manfred funcione como gatilho: à medida que o romance avança, as fronteiras entre a percepção do garoto e os surtos de Jack se tornam borradas, como se o tempo doente de um contaminasse o outro. PKD é hábil na escrita que passa a sensação da realidade deslizando para um “fora de sintonia”, como se o tempo tivesse dado um salto e deixado os vivos um pouco mais mecânicos, um pouco mais mortos.
Esse jogo de temporalidade não é só formal ou psicológico; está diretamente ligado à crítica social do livro. Em O Tempo em Marte, o tempo vira matéria-prima de ficção especulativa. O pai de Jack, Leo, vem de uma Terra saturada, onde já não há mais espaço para crescer, e usa informações privilegiadas da ONU para comprar, antes de todo mundo, terras “inúteis” em Marte que serão valorizadas com um futuro projeto de habitação. Arnie Kott quer usar Manfred como oráculo para voltar no tempo, plantar sua estaca antes de Leo e garantir o lucro, não sendo por acaso que seu interesse na “doença” do garoto é puramente financeiro. É como se Dick dissesse: no capitalismo, até o futuro é um bem imobiliário. O tempo, aqui, é território a ser demarcado, comprado, explorado ou, no caso de Manfred, sequestrado: a consciência de uma criança transformada num radar para oportunidades de negócio.
Essa lógica colonial atravessa também a relação com os Bleekmen, talvez o elemento mais amargo do romance. Dick não os idealiza como “bons selvagens”, mas é muito claro em sua denúncia do projeto colonial: os humanos chegam, sequestram água, empurram a população nativa para a margem e ainda atribuem a eles uma aura “mística” utilitária, seja na forma do water-witch que os Bleekmen dão a Jack, seja na rocha sagrada que Kott quer instrumentalizar como portal temporal. O tempo, para os colonizadores, é linha reta, progresso, construção de condomínios AM-WEB sobre desertos. Para os Bleekmen, é ciclo, repetição, rituais em torno de espaços sagrados. O desejo de controlar o tempo, seja como poder político, seja como lucro, passa por profanar aquilo que os nativos consideram intocável. Mesmo quando Dick tropeça em estereótipos (e tropeça, à luz de hoje), há uma consciência incômoda da violência colonial: tudo que os humanos tocam, do ecossistema à cronologia, vira recurso.
Narrativamente, Dick radicaliza essas ideias no bloco central do livro, quando reencena múltiplas vezes o mesmo encontro entre Kott, Jack, Doreen e Manfred no apartamento de Kott. A cena é apresentada em versões levemente alteradas, cada uma filtrada pela percepção de um personagem (e, em alguns momentos, pelo olhar distorcido de Manfred), até finalmente acontecer “de verdade” na linha principal. O efeito é brilhante e desconcertante: sentimos que estamos assistindo à mesma situação em realidades paralelas, mas, no universo do livro, é mais como se o tempo tivesse derretido, com o futuro vazando de volta para o presente em forma de versões alternativas. Para um leitor acostumado à ficção científica mais “limpa”, isso pode soar caótico; mas em termos temáticos, faz um sentido cruel: quando o tempo é mercantilizado e as mentes estão doentes, o presente perde sua solidez. O que se repete não é exatamente o evento, mas o medo de que ele aconteça, em uma escrita de looping ansioso, quase clínico.
Do ponto de vista dos personagens, O Tempo em Marte é um livro de gente cansada, ressentida e quebrada. Jack não é exatamente carismático, mas sua luta para manter a sanidade tem uma melancolia muito forte, sendo que não está tentando “salvar o mundo”, só garantir que consiga continuar instalando encanamentos sem ser engolido por alucinações. Toda a abordagem dramática sobre problemas mentais é bastante pertinente, representativa e sentida ao longo do livro. Já Kott é um dos vilões mais interessantes de Dick: pequeno tirano sindical, brutal, racista, mas com fraquezas muito humanas, preso entre o desejo de vingança e a tentativa patética de controlar algo que, no fundo, o aterroriza. Manfred, no meio disso, é menos personagem que presença: um ponto fixo de pavor, tanto para si mesmo quanto para os outros. Dick não “explica” o autismo; traduz a experiência do garoto em imagens temporalmente fragmentadas, visões de ferrugem, hospitais arruinados, prédios AM-WEB decadentes, sempre com uma destreza para construção de cenários mentais. Há um esforço genuíno de colocar o leitor dentro desse espaço mental, ainda que filtrado por uma sensibilidade dos anos 1960 (ou seja: há momentos que hoje soam datados ou pouco cuidadosos em termos de representação, mas a intenção de empatia está lá).
Tecnicamente, o romance é típico de Dick: prosa rápida, às vezes quase descuidada, diálogos secos, descrições funcionais, com momentos de brilho súbito. A estrutura de pontos de vista alternados e episódios “repetidos” funciona bem como estratégia para nos jogar dentro da quebra temporal, mas também contribui para a sensação de desorganização em alguns trechos. Há capítulos em que é difícil saber se estamos num flashforward, numa alucinação de Jack, numa visão de Manfred ou numa sequência “objetiva”, o que, em termos de atmosfera, é potente, mas pode cansar e até confundir além do necessário. A construção de cenário marciano é eficiente na medida em que precisa ser: não há grandes excursões de worldbuilding, apenas detalhes suficientes de colônias, escolas com simulacros, postos de água, helicópteros, barracos de Bleekmen, para nos situar. É menos um “planeta alienígena” e mais um espelho deformado de fronteiras terrestres: um faroeste burocrático, empoeirado, regido por contratos e ressentimento.
Nem tudo funciona dentro do caos, claro. O início do livro é meio emperrado, acho que a narrativa demora a fluir, e não dá pra fugir de certos aspectos herméticos (ou, talvez, confusos mesmo) de certos blocos da história que nem sempre são bem concatenados ou solucionados. Há também uma certa insistência em explicações teóricas (especialmente nas falas de Glaub) que às vezes didatizam demais aquilo que o próprio texto já mostra com força nas cenas. Ainda assim, O Tempo em Marte é um dos romances mais interessantes de Dick justamente porque condensa, em um enredo relativamente curto, muitos dos nervos expostos que depois o autor exploraria em obras maiores: a instabilidade da realidade, a fragilidade da percepção, o entrelaçamento entre paranoia individual e violência sistêmica. Marte aqui não é cenário exótico, mas laboratório moral de um capitalismo colonial que tenta dominar até a cronologia. O tempo, no fim, é o verdadeiro protagonista: o tempo doente de Manfred, o tempo partido de Jack, o tempo mercantilizado por Kott e Leo, o tempo cíclico dos Bleekmen e o tempo melancólico de um futuro que já nasceu em ruínas.
Lido hoje, o livro parece menos “história de Marte” e mais uma trama sobre viver em um mundo em que o futuro foi sequestrado por governos, empresas e especuladores, sendo devolvido às pessoas comuns como pesadelo ou mercadoria. Nesse sentido, PKD conversa muito bem com o subgênero da distopia. Em O Tempo em Marte, a distorção assume a forma de lapsos temporais, visões e rochas sagradas; mas o que realmente assombra é perceber o quanto aquela colônia distante se parece com a nossa própria linha do tempo.
O Tempo em Marte (Martian Time-Slip) — EUA, 1964
Autor: Philip K. Dick
Editora original: Ballantine Books
Edição lida para esta crítica: Editora Aleph; 1ª edição (28 janeiro 2020)
Tradução: Daniel Lühmann
320 páginas
