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Crítica | O Tesouro de Barba Rubra

por Michel Gutwilen
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Curioso é o caso de O Tesouro de Barba Rubra, pois ao passo que a obra parece menor dentro da filmografia de Fritz Lang — certamente longe das suas mais faladas, inclusive no contexto de sua fase norte-americana — o filme de 1955 possui um carinho especial dos mais célebres críticos. Sobre as reações, o francês Serge Daney descreve a relação entre os protagonistas como uma metáfora para a própria cinefilia, em que o pai é o autor e o cinéfilo é a criança, que está ali não só para dar um passeio com ele, mas para que ele mostre o quão grave pode ser o mundo. Já o português João Bénard da Costa dedicou dois textos apaixonados ao longa e descreveu que ele é um “é um daqueles encontros que ou se têm ou se não têm, como toda a espécie de encontros (com pessoas ou obras) em que a atracção releva do mágico”. Voltando para a França, Jean Douchet também escreveu na Cahiers du Cinema que o filme é “livre de qualquer pretexto social, de qualquer demonstração, entregue apenas à euforia da aventura, ao maravilhamento do conto, forneceria, se necessário fosse, uma prova irrefutável”. Cabe então refletir o que deu um certo status cult a esta obra específica de Lang.

As afirmações dadas pelos entusiastas do filme parecem ajudar a encontrar o ponto em comum que trouxe este encantamento coletivo, que igualmente se manifesta na visão deste que vos escreve. Tematicamente, O Tesouro de Barba Rubra, que é adaptado do livro homônimo de J. Meade Falkner, não envolve uma premissa inovadora: sua base está em uma relação paternal forçada, de um órfão que queria um pai e de um pai que não desejava um filho. Desta relação, há o encontro de dois mundos: a inocência infantil e a malícia do mundo adulto — Jeremy Fox é um personagem tipicamente languiano: errôneo, incapaz de se adequar ao sistema e a lei, mas marcado pela culpa e a busca da redenção. Assim, ainda que o pathos da história seja universal, sua base se dá em um contexto mais específico, manifestado na mise-en-scène de Lang, que é o de filmar este mundo fantasioso com um encantamento de quem se depara com o desconhecido. Inclusive, este aspecto se manifesta até metalinguisticamente, já que este filme é como um sonho anômalo dentro da fase americana do autor, ao ir na contramão da maioria dos projetos que ele realizava naquele momento, sendo filmado a cores e em CinemaScope (posteriormente criticado pelo próprio), além de ser ambientado em um retorno incomum ao século XVII. 

Por um lado, há uma comunicabilidade temática entre O Tesouro de Barba Rubra e outras obras de Lang, pois a criança assume o papel de um contraponto narrativo que as mulheres dos noir languianos normalmente assumem. Ambos são aqueles que inspiram o desejo de mudança nos homens adultos languianos, mas ao mesmo tempo também são a causa de um desgraçamento. Normalmente, não há salvação, pelo menos não no mundo material. Os pecados na Terra devem ser pagos, ainda que exista uma conciliação espiritual. Neste sentido de predestinação, o próprio Jeremy Fox (Stewart Granger) antecipa o que irá por vir no diálogo com sua mulher, que está receosa de que o relacionamento do contrabandista iria corromper o menino, mas ele responde que é o garoto que irá fazer isso com sua vida. 

Contudo, o diferencial de O Tesouro de Barba Rubra é o olhar, portanto, de mise-en-scène. A criança não é apenas parte da narrativa, mas o olhar da narrativa, com seu ponto de vista substituindo a costumeira onisciência opressiva de Lang. Evidentemente, para uma criança, o medo, a curiosidade e a sedução (do olhar, não sexual) andam juntos, e é assim que o diretor filma sua fantasia, pois nesta fase a vida é experienciada muito mais através dos sentidos do que por exemplo, uma moral ou lógica. O mesmo diretor que filma a estátua de um cemitério como se estivesse dentro de um pesadelo expressionista é também o que filma uma cena absolutamente hipnotizante de uma cigana realizando um número musical, no qual a criança observa voyeurísticamente pela janela. 

Já em tom, nas vezes em que o jovem acompanha Fox em uma atividade que envolve suas malandragens, o senso de se estar vivendo uma aventura predomina sobre qualquer dramaticidade carregada. Aliás, este lado encantado do olhar se manifesta na própria caracterização de Stewart Granger como o bandido, pois sua presença passa muito mais a imagem descontraída de sedutor bon-vivant aventureiro do que a de um chefe de uma associação criminosa e assassino. 

Portanto, parece residir nesta pureza e inocência do olhar; neste relacionamento de uma criança com um fora-da-lei sem julgamento morais; no contexto de busca paternal e passado em um universo muito próprio (portanto, deslocado da verossimilhança, ainda que jamais apresente explicitamente elementos mágicos) que existe as explicações para que O Tesouro do Barba Rubra seja uma obra languiana tão especial. Por mais que o próprio diretor tenha dito que ficou insatisfeito com a cena final do filme, desejando que a narrativa acabasse com o jovem se despedindo de Fox na beira do mar, permito-me discordar de Lang. No fim, é preciso que haja última reafirmação do olhar imaculado: as portas permanecerão sempre abertas, pois menos importa a certeza da despedida e sim que a esperança do retorno permaneça viva. Afinal, uma criança precisa sonhar.

O Tesouro de Barba Rubra (Moonfleet, 1955) — EUA
Direção: Fritz Lang
Roteiro: Jan Lustig, Margaret Fitts (baseado na novela de J. Meade Falkner)
Elenco: Stewart Granger, George Sanders, Joan Greenwood, Viveca Lindfors, Jon Whiteley, Liliane Montevecchi, Melville Cooper, Sean McClory, Alan Napier, John Hoyt
Duração: 83 mins.

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