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Crítica | O Tubarão Ainda Funciona: O Impacto e o Legado de Tubarão

por Leonardo Campos
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A geração mais jovem que conheceu os filmes de tubarões por meio das diversas cópias que pulularam na indústria ao longo das últimas quatro décadas deve ficar parcialmente decepcionada quando assiste ao magnífico exercício cinematográfico de Spielberg. Minha afirmação não é aleatória, mas parte da reação de muitos estudantes em disciplinas introdutórias do curso de cinema, pois quando o filme é exibido ou comentado, questões como “ultrapassado”, “chato”, “pouco interessante”, “sem ação”, dentre outros comentários em tom crítico se estabelecem.

Crescidos na cultura do sangue em excesso, as poucas mortes que aparecem no filme e a ação menos efusiva de tramas como o divertido Do Fundo do Mar geralmente causam o afastamento. Uma parte dos estudantes querem mortes, gritos, perseguições velozes e furiosas. É nessa hora que a explanação precisa ser panorâmica e o filme, devidamente decupado, para que desta maneira, todos compreendam os motivos que fazem o tubarão funcionar até hoje. Para os desavisados é uma aula de cinema, produção que deixou imenso legado.

O documentário em questão tem a missão de reforçar a mensagem. Produzido graças ao interesse de fãs e especialistas que compreendem a importância do filme para a história do cinema, o documentário traz depoimentos de gente legitimada pela indústria, com sucesso de público e crítica. São opiniões bem convenientes de Chris Kentis, Bryan Singer, Eli Roth, Kevin Smith, Greg Nicotero, Robert Rodriguez e relatos dos principais membros da equipe técnica de Tubarão, dentre eles, o cineasta Steven Spielberg, o diretor de fotografia Bill Butler, a montadora Verna Fields, o designer de produção Joe Alves, o roteirista Carl Gottlieb, o escritor Peter Benchley, o além dos importantes depoimentos dos atores Richard Deyfruss e Roy Scheider.

Os diversos relatos de fãs e críticos de cinema também são importantes, pois reforçam a ideia de “impacto” do título, pessoas que tornam a produção parte da memória bastante luminosa na seara cultural contemporânea. Narrado por Roy Scheider, o documentário abre com imagens resgatadas dos bastidores de produção do filme que durou sete meses para ser finalizado. Os relatos iniciais são tensos, pois constantemente os entrevistados afirmam como foi estressante filmar Tubarão, algo que muda mais adiante quando relatos emocionantes enchem a tela, com afirmações do tipo “são tantas histórias que passaria 35 anos contando”. Ousado no formato de produção e inédito na forma como estabeleceu a sua campanha de divulgação, o filme marcou gerações também por suas qualidades narrativas, algo que as pessoas geralmente dissociam quando um filme é muito popular e bem sucedido.

“Sempre que algas marinhas passam em minhas pernas eu sinto um arrepio”, declara um entrevistado que disse ter ficado impactado com o poder de sugestão do filme e as doses generosas de horror. Uma mãe certa vez encontrou Spielberg na praia e esbravejou com o cineasta por conta do filho que não queria de maneira alguma tomar banho no mar. De acordo com a irritada senhora, “o cineasta e o seu filme eram os culpados”. A emoção também tomou conta dos cineastas citados anteriormente, pois tais profissionais alegam que Tubarão foi definitivo na escolha de suas carreiras. Primeiro filme realizado em pleno oceano, o trajeto do imenso e feroz tubarão-branco foi desafiador na carreira de todos os envolvidos.

Pressionados pelo estúdio, haja vista a explosão do cronograma e do orçamento, os membros da equipe técnica rememoram a experiência e agradecem ao sucesso, pois se pregava, inclusive, que o filme naufragaria que nem um dos tubarões mecânicos produzidos por Don Chandler, o responsável pela lula gigante da versão cinematográfica de Vinte Mil Léguas Submarinas. Esse fluxo enorme de informações é bem administrado pela direção de Erik Hollander, baseada no roteiro de James Gelet, material editado pelo próprio Gelet, em parceria com Hollander, profissionais multitarefa.

A arte de Roger Kastel para a capa da edição de bolso do livro chamou à atenção dos produtores e se tornou o pôster de divulgação do filme. Referenciado ao longo dos anos pela cultura pop, a peça foi alvo de pastiche, paródia e outras estratégias metalinguísticas em vários meios de interação na sociedade. Foi usado como elemento de crítica política e serviu de inspiração para os filmes que seguiam a cartilha da aventura de horror, tais como Piranha, Barracuda, Bacalhau, etc.

O sucesso e a inovação estabeleceram uma esteira que permitiu outros filmes gozarem dos privilégios posteriormente. Tubarão foi lançado simultaneamente em mais de duzentas salas de cinema, algo que não era tão comum como atualmente, teve divulgação na televisão, outra questão que lhe dá o ineditismo, teve o trailer narrado pelo gutural Percy Rodrigues, profissional capaz de emular a temática do filme sobre o nosso medo primitivo em relação a algo que não podemos ver, além de criar personagens esféricos que estão bastante próximos do homem comum de nosso cotidiano, elemento que traz maior adesão do público.

Com depoimentos entusiasmados dos entrevistados, em especial, Richard Deyfruss e suas numerosas piadas acompanhadas de bastante histrionismo, O Tubarão Ainda Funciona é um documentário que reflete a importância dada pelos estudiosos de cinema no que tange ao resgate da memória da história desta arte relativamente recente se comparada ao milenar percurso narrativo do teatro e da literatura. Para Laurent Bouzereau, realizador do importantíssimo Os Bastidores de Tubarão, documentário com mais de 120 minutos de relatos e reflexões sobre o processo de produção do filme, isto é, a crítica genética da produção, “ter a memória resguardada é algo bem a cara da cultura do DVD”, mídia que possibilitou economicamente o suporte de filmes juntamente com seus materiais de bastidores.

O merchandising é outro ponto forte em relação ao legado do filme: camisetas, canecas, imãs, selos, boias e até mesmo assento sanitários foram imaginados como produtos comerciais que gravitaram em torno do sucesso de bilheteria do filme. Um dos produtores conta que em determinado momento diminuiu o número de salas de exibição para que as pessoas interessadas não conseguissem ver o filme, pois segundo seu relato, isso causou burburinho e mais atenção para Tubarão. Videogames surgiram anos depois, passeios e festas pelo local onde as filmagens foram realizadas e eventos de fãs em torno do filme são organizados constantemente, o que comprova o “funcionamento” ainda hoje.

Com elementos de Ernest Hemingway, Herman Melville e traços das narrativas marítimas que estão até mesmo na Bíblia Sagrada, a trajetória da narrativa assustou uma legião de espectadores que sequer tiveram coragem de entrar no mar durante muito tempo, além de ter criado o caminho para um subgênero que em 2018, ainda “funciona”: “os filmes de ataques de tubarões no cinema”. Alguns ótimos, outros bons, a maioria descartável. Curioso é observar que a vida imita a arte: alguns anos depois, tubarões-brancos começaram a aparecer na região onde as filmagens foram realizadas. Ambientalistas foram convidados ao local, mas a missão da vez era diferente: conscientizar-se da importância do animal para o ecossistema. Há até um depoimento que finaliza o documentário falando sobre a consciência ecológica, etc. Mea culpa?

O Tubarão Ainda Funciona — (The Shark Is Still Working) Estados Unidos, 2007.
Direção: Erik Hollander
Roteiro: James Gelet
Elenco: Steven Spielberg, Roy Scheider, Richard Deyfruss, Laurent Bouzereau, Percy Rodriguez, Roger Kastel, Eli Roth, Robert Rodriguez, M. Night Shyamalan, Verna Fields, Joe Alves, Greg Nicotero, Kevin Smith, Bill Butler, Chris Kentis, Carl Gottlieb
Duração: 99 min.

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