Apesar de a população mundial estar envelhecendo, envelhecer e mostrar esse envelhecimento ainda é tabu, ainda é algo que a mídia e a cultura pop fazem das tripas coração para esconder, para relativizar, com a juventude sendo o foco e com “idosos jovens” sendo preferíveis a idosos que não têm vergonha alguma de mostrar sua idade. Em O Último Azul, Gabriel Mascaro e Tibério Azul levaram essa percepção muito verdadeira da realidade às últimas consequências, criando um Brasil distópico em que os idosos de mais de 75 anos deixam de fazer parte da força produtiva e são obrigatoriamente levados pelo governo para colônias habitacionais onde viverão seus últimos dias para evitar que sua “inutilidade” atrapalhe a produtividade dos mais jovens. Mas tudo, claro, é feito de forma a emprestar um verniz de homenagem e de proteção aos idosos que mascara o tolhimento dos direitos individuais em relação aos indesejáveis.
Em meio a esse cenário assustador, mas passivamente aceito por boa parte da população – um verdadeiro alívio mandar os “velhos” para longe, sendo supostamente bem tratados em lugar incerto e não sabido, não é mesmo? -, Tereza (Denise Weinberg), que já passou dois anos da idade limite depois que o governo baixa a idade de envio obrigatório para as colônias de 80 para 75 anos, vê sua vida destruída, perdendo o emprego, passando a ficar sob a guarda legal da filha e tendo seu direito de ir e vir eliminado nesse processo, inclusive sendo recolhida na rua por verdadeiras carrocinhas batizadas de Cata Velhos que exibem os idosos dentro de jaulas que lembram como os símios transportam os humanos em O Planeta dos Macacos. Com sua dignidade e liberdade profundamente atingidas, Tereza se rebela e foge perseguindo o sonho de voar em um avião pela primeira vez, nem que para isso tenha que se contentar com um ultraleve caindo aos pedaços.
Mas voar é um detalhe, já que o que Mascaro, também na direção, faz aqui é uma metáfora poética, ainda que bastante óbvia, para a liberdade, para o direito básico de se fazer o que quiser desde que os direitos de terceiros não sejam afetados e que serve de ignição para a protagonista começar uma jornada fluvial pela Amazônia em busca de si mesma, o que faz de O Último Azul um verdadeiro e raro – raríssimo! – longa de amadurecimento já na terceira idade. Tereza, na medida em que se conecta com o barqueiro Cadu (Rodrigo Santoro em essencialmente uma ponta, mas muito importante para a história), com Ludemir (Adanilo), dono de um ultraleve quebrado e, depois, com Roberta (Miriam Socarrás), uma vendedora de Bíblia digital. Entre novas experiências e um sentimento de encontrar seu espaço, de ser valorizada como uma pessoa e não como um ônus a ser carregado a duras penas nos ombros da família ou da sociedade como um todo, Tereza navega pelas águas de sua vida sem um rumo fixo, sem procurar nada que não seja viver sua vida do jeito que deseja vivê-la sem alguém para dizer-lhe o que ela pode ou não fazer.
A simplicidade visual é da essência do longa, mas é importante não confundir simplicidade com simplismo ou mesmo uma produção barata que pareça barata. Gabriel Mascaro desdobra-se no comando de uma fita em que observar os detalhes da vida e alegrar-se com singelezas como aprender a pilotar um barco ou, em um raro momento de luxo, relaxar com uma massagem é muito mais importante do que acompanhar notícias, olhar o tempo todo para pequenas telas portáteis ou comparar-se com o vizinho. Tereza sai de sua vida humilde e regrada, ameaçada com o que é essencialmente prisão perpétua, para uma vida em que ela finalmente é o elemento mais importante, algo que pode ser visto como egoísmo da parte dela, mas que está longe, mas muito longe de ser. Ao contrário, a personagem, aos 77 anos, começa a viver justamente quando a sociedade diz que não mais quer que Tereza seja parte dela. E Mascaro não tem pressa, não está interessado em velocidade e faz sua câmera observar as descobertas da protagonista, mas sem nenhum tipo de embelezamento, com tomadas em locação na bacia amazônica que capturam o feio e o bonito sem discriminação, com a direção de fotografia de Guillermo Garza usando o sol inclemente como fonte principal de iluminação e que não permite que nada seja escondido.
E Tereza é Tereza dos pés à cabeça, uma mulher idosa sem filtros. Pele enrugada, cabelos de aparência dura e despenteados, figurinos que não são desfile de moda, com Denise Weinberg abraçando a personagem com vigor e com um olhar fantástico de alguém que busca algo que não sabe bem o que é, mas que parece estar logo ali na frente, mesmo que escondido por uma névoa. A beleza de Tereza é a beleza do filme, pura, genuína, mostrando a realidade nua e crua, sem se curvar em momento algum para bobagens estéticas de pessoas vazias e insatisfeitas com o que são e, mais ainda, com o que estão se tornando, o que retorna à premissa do longa sobre o recolhimento e ocultamento dos “idosos velhos” em prol de uma purificação etarista que só quer mostrar e valorizar o que for aprovado pela tirania da maioria como bom, belo e desejável. Tereza navega pelos rios em busca de luz, em busca da vida que nunca teve, em busca do conforto com quem ela é, para longe da vergonha, das indignidades e do preconceito que terceiros fazem questão que ela sinta constantemente.
O Último Azul é Cinema poético que olha nos olhos do espectador – jovem, idoso, não interessa – e desafia sem agredir, provoca sem escancarar e faz da fuga de Tereza uma jornada pela vida e para a vida. Não há nada melhor do que uma experiência audiovisual em que o mergulho é profundo e, nessas profundezas, revela-se bonito e ao mesmo tempo assustador, feio e ao mesmo tempo hipnotizante, mantendo-nos submersos em um universo que, quando finalmente voltamos à tona, percebemos que continuamos por lá, só que, agora, de olhos bem abertos.
O Último Azul (Brasil, Chile, México, Países Baixos – 2025)
Direção: Gabriel Mascaro
Roteiro: Gabriel Mascaro, Tibério Azul
Elenco: Denise Weinberg, Rodrigo Santoro, Miriam Socarrás, Adanilo, Clarissa Pinheiro
Duração: 85 min.
