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Crítica | O Último Mercenário

por Ritter Fan
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Envelhecer tem diversas desvantagens, a maioria delas ligada com aspectos físicos externos e internos, mas o amadurecimento traz também grandes vantagens e uma delas, que ajuda sobremaneira justamente na forma como as pessoas lidam com a questão física é o autoconhecimento, o que necessariamente passa pelo processo de aceitar tudo o que acontece com o corpo e a mente. Levar-se a sério demais a vida toda, preocupando-se com as aparências e escondendo dores nas costas ou outros problemas mais complexos, inclusive e talvez principalmente o inevitável e crescente esquecimento dos outros em relação aos mais velhos, é a receita mais certa e direta para a decepção.

E eu digo isso, pois, apesar de nunca ter largado a carreira de ator, trabalhando sem parar em múltiplos filmes, Jean-Claude Van Damme, assim como a maioria dos brucutus dos anos 80, simplesmente saiu de moda, sendo substituído por versões mais jovens dele mesmo, tudo isso enquanto aquela incrível forma física que lhe permitia feitos atléticos impressionantes, como seus famosos espacates, além de sua reconhecida beleza, foi se esvaindo a cada nova produção. No entanto, o lendário belga que encantou o mundo com obras como O Grande Dragão Branco e Soldado Universal não acusou completamente os golpes que a vida lhe deu e, muito ao contrário, passou a absorver sua inesquecível, mas inegavelmente cartunesca persona lutadora em sua carreira pós-ápice noventista, levando-os a longas como JCVD, em 2008 e à infelizmente cancelada série Jean-Claude Van Johnson.

O Último Mercenário, a mais recente produção francesa destinada à distribuição pelo Netflix, é outra tentativa do astro em construir uma história em cima de sua reputação cinematográfica, jamais desviando-se da mais completa autoconsciência disso e de todo o potencial de ridículo que isso pode gerar, o que já começa com o preâmbulo em que vemos seu personagem, o agente secreto transformado em mercenário Richard Brumére – mais conhecido como A Bruma – fazendo um completamente impossível espacate entre as vigas do teto de uma construção abandonada para emboscar dois assassinos e resgatar um jovem. São, aliás, os momentos dessa natureza do quarto longa de David Charhon que funcionam melhor, ou seja, quando o roteiro bem obviamente suga a “mitologia” de Van Damme e a repagina de maneira cômica, com o ator aparentemente muito à vontade fazendo as maiores bobagens possíveis, incluindo o uso dos mais variados disfarces que nada disfarçam, com cara de sério e exibindo uma forma física ainda invejável em seus mais de 60 anos de idade.

Claro que as pancadarias usuais de seus filmes ganham uma completa repaginada, com menos planos gerais e mais planos americanos e closes de costas de forma que Van Damme possa ser substituído por dublês, além de uso de truques bem óbvio de câmera para esconder um lado atlético que, se antes já era impossível, com o ator em seus 20 anos, hoje somente poderia ser fruto de bruxaria. Mas, no geral, se o espectador entender e aceitar que a vida é assim mesmo, cada vez mais cheias de limitações, o trabalho de Charhon filmando um Van Damme ainda atlético, mas obviamente sem a mesma elasticidade de antes, a coisa funciona bem.

O problema mesmo do longa está em tudo que gravita ao redor de Van Damme e da besteirada que é premissa da história, com o tal lendário e esquivo ex-agente secreto retornando à França depois que seu filho Archibald (Samir Decazza), que nunca conheceu o pai, perde a imunidade diplomática e a mesada governamental que fez parte do acordo de “desparecimento” de Brumére anos atrás e passa a ser perseguido pelas autoridades. É que, com exceção da jovem Assa Sylla como Dalila, que logo se junta ao mercenário para achar seu filho e da curiosidade que é ver a lendária Miou-Miou no longa como Marguerite, antiga amiga de Brumére, o restante cai por terra seja na cateogoria humor escrachado, seja na capacidade de Charhon de dirigir sequências de ação sem fazê-las parecer cansativas e repetitivas.

O roteiro simplesmente não dá oportunidade para que a abordagem cômica funcione quando ela não depende do “fator Van Damme” para funcionar, o que torna os demais membros do elenco, especialmente o insosso Decazza, em partículas expletivas cujas funções são de estender o longa para muito mais tempo do que ele deveria ter. Sequências como o burocrata com sobrepeso andando de bicicleta por Paris apenas de cueca podem ter parecido engraçadas no papel, mas, na prática, elas são apenas constrangedoras mesmo, especialmente quando ganham duração injustificável que somente afunda a história do ridículo ruim, em oposição ao ridículo bom.

A citada série Jean-Claude Van Johnson, que certamente serviu de inspiração para O Último Mercenário, deveria ter influenciado mais ainda o roteiro que Charhon escreveu com Ismaël Sy Savané, pois lá o equilíbrio entre a patetice e o humor autoconsciente é muito mais presente e muito mais bem conduzido. Aqui, os extremos de idas e vindas repetitivas, reviravoltas constantes e perseguições inanas minam o verdadeiro valor da obra que é deixar Jean-Claude Van Damme ser a versão mais velha de Jean-Claude Van Damme sem qualquer vergonha de ser feliz. Ao tirar o ator do foco único da narrativa, o longa acaba se despedaçando na medida em que a trama avança.

Por outro lado, em franca contradição ao que escrevi logo acima, mais pas tellement, O Último Mercenário acerta quando Van Damme é a estrela, seja ele barbado, imberbe ou de peruca feminina, não importa. O que realmente importa é que o ator muito claramente vestiu sua idade e sua persona clássica para entregar uma comédia que só não diverte mais porque teima em se desviar da pessoa que deveria ser seu foco único.

O Último Mercenário (Le Dernier Mercenaire – França, 30 de julho de 2021)
Direção: David Charhon
Roteiro: David Charhon, Ismaël Sy Savané
Elenco: Jean-Claude Van Damme, Eric Judor, Miou-Miou, Patrick Timsit, Alban Ivanov, Assa Sylla, Samir Decazza, Valérie Kaprisky, Michel Crémadès, Nassim Lyes
Duração: 110 min.

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