O cinema da Boca do Lixo (polo de produção popular do centro de São Paulo entre 1960 e 1980, conhecido por filmes de baixo orçamento, exploitation e produções marginais) vivia seu momento mais turbulento em 1984. As pornochanchadas, que durante toda a década anterior haviam garantido público fiel e lucros consistentes para os produtores paulistanos, enfrentavam uma concorrência inesperada. Filmes pesadões, importados dos Estados Unidos e da Europa, chegavam às salas brasileiras oferecendo algo que as comédias eróticas nacionais jamais haviam apresentado: sexo explícito sem rodeios ou historinhas de contexto. A mudança não era apenas estética (ou de propósito, mesmo), mas também econômica: o que funcionava como entretenimento popular de nicho, precisava, agora, competir com a pornografia pura e simples. Cláudio Cunha, um dos produtores mais experientes da Boca, entendeu que era preciso se adaptar… ou então simplesmente desapareceria. Sua resposta a esse dilema foi o explícito Oh, Rebuceteio!, uma tentativa de preservar a cara da tradição pornochanchadesca dentro das novas exigências (leia-se: pornografia direta) do mercado.
Diferentemente de David Cardoso, o “Rei da Pornochanchada” que dirigiu várias produções explícitas, Cunha havia se mantido distante do hardcore até então. Oh, Rebuceteio! foi, na verdade, sua única incursão nesse território, e a estratégia que escolheu foi engenhosa. A história acompanha Nenê Garcia, diretor teatral interpretado pelo próprio Cunha, durante os ensaios de uma peça experimental que faz a gente lembrar diretamente de A Chorus Line, musical que havia estreado no Brasil em abril de 1983. E a referência não é aleatória: ambos trabalham com atores num longo processo de audição/preparação; mas enquanto o musical da Broadway explora os sonhos e as angústias dos dançarinos, Oh, Rebuceteio! transforma a improvisação do elenco em cenas explícitas de sexo, ou seja, a ideia funciona porque estabelece uma lógica interna coerente. Cada grupo desenvolve cenários específicos, justificando narrativamente as sequências de putaria real através de um discurso de experimentação artística. É uma sacada esperta que permite ao diretor economizar recursos (toda ação acontece num palco) enquanto oferece “pretexto intelectual” para o material pornográfico. Ou seja, neste filme, podemos classificar essas cenas como qualquer coisa, menos como “gratuitas”.
É claro que os momentos mais interessantes surgem quando o filme abandona qualquer (tentativa de) seriedade para abraçar a bagaceira por completo. A quebra da quarta parede, com Nenê Garcia se dirigindo diretamente ao público sugerindo masturbação, ou as sequências de devoção religiosa à Santa Edwiges intercaladas com cenas eróticas, revelam o DNA satírico da pornochanchada, além de trazer diversos aspectos da nossa cultura ou mesmo da dinâmica da indústria cultural, com direito a fotógrafo que se aproveita da modelo, assistente de palco que age como “agente duplo” junto ao produtor, e brigas de ego ou puxadas de tapete entre pessoas do elenco. São momentos que servem como alfinetadas no moralismo e mostram claramente que para cada santinho ou santinha carola e “do lar” que andam pelas ruas, existem castelos de perversão e coisas estranhas feitas às escondidas. Falso moralismo e hipocrisia, afinal, nunca foram novidades na sociedade, não é mesmo?
Contudo, essa mesma estrutura que gera os melhores momentos (alguns, extremamente engraçados) também acaba desmascarando as contradições mais incômodas do projeto, chegando ao ápice quando um grupo de atrizes se vestem como crianças num parquinho de brincadeiras (amarelinha no chão e tudo) antes de simular uma transa com um personagem fantasiado de urso. Mesmo que a vestimenta infantilizada seja mais ou menos abandonada no meio da sequência, o conceito inicial escancara fantasias perturbadoras e criminosas que eram socialmente toleradas nos anos 1980, época em que discussões sobre sexualização de menores não tinham a urgência e o peso que adquiririam décadas depois.
A famosa sequência do Banquete Bacanal representa o ápice estético de toda essa experiência: gente pelada se misturando com frutas numa composição que lembra quadros barrocos corrompidos pelo tesão popular e barato: cenouras, abacaxis, maçãs, laranjas, uvas, bananas, mamões, maracujás e melancias dividem espaço com seios, bundas e genitálias numa orgia gastronômica que certamente consumiu boa parte do orçamento disponível. É uma imagem simultaneamente grotesca e hipnótica (nunca pensei, por exemplo, que veria um abacaxi com casca sendo esfregado numa vulva; ou uma cenoura ser utilizada como consolo), que sintetiza toda a proposta do filme, reunindo o elenco que oscila entre postura teatral e amadorismo pleno, num momento de entrega sexual… vegana. Cunha empresta solenidade de “líder de seita” a Nenê Garcia, contrastando ironicamente com o material que está dirigindo, enquanto a personagem Letícia (Eleni Bandettini) completa sua trajetória da ingenuidade à plena desenvoltura sexual numa progressão clássica das protagonistas de pornochanchadas, que, devo dizer, está muito melhor construída aqui do que em muita “jornada de descoberta” das adoradas Emmanuelles por aí.
Oh, Rebuceteio! conseguiu criar uma ponte precária, mas significativa, entre a tradição erótica mais soft das pornochanchadas tradicionais e as demandas pesadas do mercado estrangeiro. Cláudio Cunha entendeu melhor do que ninguém o significado da palavra que escolheu para título. Rebuceteio, segundo os dicionários, significa “grande confusão” ou “bagunça generalizada“. E é exatamente isso que o filme oferece: uma bagunça sexual, moral e estética que espelha perfeitamente as contradições de um país tentando se modernizar sem abandonar seus vícios enraizados. O que sobra daí são as possibilidades criativas e os preconceitos típicos de sua época, num momento em que o cinema nacional se via obrigado a competir com a pornografia explícita sem ter ferramentas culturais para essa transformação. No meio de tanta confusão, temos um produto ao mesmo tempo popular, provocativo e desenfreado, o retrato escancarado de um Brasil entre o tesão, o nojo, a chacota e o caos.
Oh, Rebuceteio! — Brasil, 1984
Direção: Cláudio Cunha
Roteiro: Cláudio Cunha, Mário Vaz Filho
Elenco: Cláudio Cunha, Eleni Bandettini, Elizabeth Bacelar, Jaime Cardoso, Ronaldo Amaral, Cleide Cunha, Lia Farrel, Raul Escudero Filho, Inês Kalafi, Vinicius Kruger, Ruy Leal, Wagner Maciel, Débora Muniz, Peri Ornellas, Pedro Perurena, Carlos Pessoa, Paulo Prado, Ilga Prata
Duração: 75 min.