Apesar de lembrar ter adorado o hoje clássico longa-metragem coreano Oldboy, de Chan-wook Park, eu só o assisti uma vez na época de seu lançamento, em 2003, e nunca mais, pelo que não me recordava de nada a não ser a premissa básica, a de um homem que, depois de 10 anos preso em uma prisão privada, é solto e começa a tentar descobrir quem o encarcerou e o porquê. Como também deixei passar a adaptação de 2013, de Spike Lee, mergulhei nos três volumes do mangá de Garon Tsuchiya e Nobuaki Minegishi que foram republicados por aqui neste ano pela Comix Zone quase que completamente ignorante de tudo, para uma das leituras de quadrinhos japoneses que acabou sendo das mais prazerosas que já tive, o que é particularmente importante por eu não ser um ávido leitor de mangá e fugir como o diabo foge da cruz daquelas obras intermináveis a que autores nipônicos se dedicam por décadas a fio, por vezes sem terminá-las.
Mas Old Boy é um pacote fechado – decididamente longo, com suas mais de 1.600 páginas no total -, uma história com começo, meio e fim com uma premissa fascinante que, porém, é apenas a isca para fisgar o leitor. Afinal, o que realmente importa, pelo menos para mim, na criação em 79 capítulos de Tsuchiya, falecido em 2018, e de Minegishi, é a impressionante capacidade da dupla de contar uma narrativa de cunho muito pessoal, uma verdadeira jornada de descoberta e autodescoberta do protagonista Shinichi Gotô que não se vale de páginas de ação tradicional e sequer de violência como substituto barato para a história. É impressionante notar como o caminho que Gotô escolhe trilhar depois de sair de seu cárcere em que só teve uma televisão como companhia é essencialmente pacífico, em que a indagação sobre o que cercou sua prisão é muito mais relevante para ele do que se entregar à barbárie, o que talvez seja o reflexo de muita gente depois de passar por essa privação por uma década.
Diria que é extremamente corajoso da parte dos mangakás o foco justamente no jogo de perguntas e respostas que Gotô empreende, com cada capítulo incrementando com toda a calma e tranquilidade, sem demonstrar a menor pressa, a trama que está por trás de tudo, com revelações constantes, mas nenhuma delas arrebatadora, com aquele condão de plot twist que se convencionou esperar em obras de mistério desse naipe. Ao mesmo tempo, a contemplação do protagonista sobre sua própria vida é fascinante, com Minegishi usando o silêncio e a melancolia para criar páginas e mais páginas de observação dele e do mundo ao seu redor, sem qualquer ação na definição tradicional do termo. O resultado de um texto enxuto e milimetricamente parcimonioso com um trabalho artístico detalhado, bonito e de caráter profundamente pensativo resultaram, pelo menos para mim, na tal experiência surpreendentemente prazerosa que mencionei.
Digo que foi uma surpresa não por não ser exatamente um leitor assíduo de quadrinhos japoneses, mas sim porque os criadores de Old Boy se esquivaram do banal, do óbvio, do lugar-comum, mantendo a narrativa distante de convenções do gênero e entregaram uma história que não é de vingança, não tem violência para além do mínimo necessário (que me lembre, há apenas dois disparos de armas de fogo em todo o mangá e apenas um mortal e fora de quadro e o mesmo vale para pancadaria) e não se vale da bengala narrativa das grandes e surpreendentes reviravoltas retiradas da cartola do roteirista. Old Boy dilacera expectativas e usa o também discreto número de personagens – que vão sendo introduzidos de maneira sóbria e com perfeito ritmo dentro da narrativa – para realmente contar uma história sobre escolhas e sobre identidade, com o pobre Gotô navegando por sua vida com uma nobreza e uma moralidade que é rara de se ver em quadrinhos de qualquer espécie.
Os únicos momentos em que Tsuchiya e Minegishi caem no que posso chamar de “armadilhas tradicionais de mangás” é quanto a dupla lida com o sexo. Existe um inegável caráter de fetiche de relacionamento de um homem mais velho com uma garota bem mais nova na primeira mulher com quem Gotô transa e que se torna sua namorada, com direito a chamá-lo de “tio” para tornar tudo ainda mais moralmente dúbio e não exatamente de bom gosto, ainda que a presença da jovem na história seja relevante e constante do começo ao fim. No outro lado dessa mesma moeda, há o fetiche do sexo mais violento e “explícito” que acontece uma única vez mais a frente no mangá, como uma forma de chocar. Não estou sendo pudico em meus comentários, mas sim apenas constatando os únicos dois momentos em que os criativos se amoldam “ao que se espera” deles, por assim dizer, até porque não acho que essas escolhas, no frigir dos ovos, diminuam sequer por um momento a qualidade geral do trabalho quase irretocável deles.
Quando finalmente cheguei ao final da jornada de Gotô, minha sensação foi de completude, foi de ter lido uma história que, mesmo com sua premissa bizarra, fez completo sentido narrativo para mim. Tenho certeza, porém, que muitos devem ter achado a “revelação final” um tanto quanto decepcionante, mas, muito ao contrário, considero a escolha discreta e até simples de Garon Tsuchiya uma verdadeira pérola, com o roteirista mantendo, sem se desviar, de seu caminho humano e ponderado sobre a condição humana. E, mesmo que o final tivesse sido tenebroso, tenho para mim que estamos diante de uma daquelas obras em que o que realmente importa é a jornada e não o destino. Não estou, com isso, querendo arrumar desculpa para um final ruim, pois, como disse, o final foi exatamente o que tinha que ser para mim, mas sim para sublinhar que o que destaca Old Boy é justamente as escolhas não tradicionais que são feitas ao longo da narrativa e que subvertem completamente o que pode parecer, em um primeiro momento, apenas uma desculpa para atos de vingança de um homem torturado por 10 anos, tudo isso contado de maneira sublime, fluida, ritmada e absolutamente engajante da primeira até a última página. Meu receio, agora, é rever o filme de 2003 e me decepcionar…
Old Boy (オールド・ボーイ/ Ōrudo Bōi – Japão, 1996-1998)
Roteiro: Garon Tsuchiya
Arte: Nobuaki Minegishi
Editora original: Futabasha (Weekly Manga Action)
Data original de publicação: 1996 a 1998 (79 capítulos)
Editora no Brasil: Comix Zone
Data de publicação no Brasil (das edições lidas para a presente crítica): 17 de março (vol. 1), 29 de abril (vol. 2) e 05 de junho (vol. 3) de 2025
Tradução: Luis Libaneo
Páginas: 1.664