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Crítica | Oliver! (1968)

por Gabriel Carvalho
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“Consider yourself at home.
Consider yourself one of the familhy.
We’ve taken to you so strong.
It’s clear we’re going to get along.”

Contém spoilers.

O cinema, já encaminhando-se à década de setenta, não era mais classicista, ainda mais porque a Nova Hollywood imperava consideravelmente, ou seja, um cinema mais autoral era tendência e o caráter artístico embriagado por uma graciosidade menos ríspida estava ultrapassado. A conquista do Oscar de Melhor Filme por parte de Oliver!, portanto, não poderia ser mais incoerente com o momento da época, sendo um passo atrás para um contexto que estava proclamando um outro cinema – no final das contas, o visionário 2001 – Uma Odisseia no Espaço era do mesmo ano. A obra em questão, embora não seja um projeto norte-americano, mas uma produção britânica, possui muitas semelhanças com o espírito cinematográfico que marcou a Clássica Hollywood, assim como a última década antes de sua distribuição, começando com Gigi. O prêmio máximo do cinema, desde então, tinha sido concedido a quatro musicais, todos versões de obras não-musicais e, nos casos posteriores ao de Gigi, versões de peças musicais que adaptaram obras não-musicais, como A Noviça Rebelde. Oliver! é uma adaptação da peça musical homônima, que é, por sua vez, uma reimaginação da literatura do aclamado autor britânico Charles Dickens.

A gigantesca produção é culpada pelo gênero do musical ter sido descartado, apesar de outrora amado, em excesso provavelmente, até a chegada do novo século, mudando alguns paradigmas com a vitória – infame – de Chicago. O próprio cinema britânico apenas seria ressurgido, nos olhares da Academia, quando a Nova Hollywood já tivesse morrido, nos anos 80. O mérito, o contexto e a relevância são características que acabam sendo um pouco manchadas por sentimentos de injustiça e de desserviço a novos tempos, sob vieses anacrônicos ou não, enaltecendo ou um cinema que se renova ou um cinema que se estagna. Como Era Verde o Meu Vale, para algumas pessoas, pode ser realmente melhor que Cidadão Kane. Oliver!, no entanto, parece ser mais um desespero em não querer mudar o cenário em que a indústria se encontrava do que uma escolha consciente das qualidades do projeto, até mesmo dentro do gênero que ostenta com tanto vigor por algum tempo, mas, posteriormente, acaba se esquecendo de amar. O carisma permanece, o valor de produção ainda convence, contudo, se Oliver! era ultrapassado quando foi lançado, o anacronismo de agora, permissivo, torna a obra um pouco mais fascinante.

Oliver Twist (Mark Lester) é um órfão que reclama da péssima comida e, por causa disso, ganha as consequências mais inesperadas e questionáveis do mundo – sob os dizeres “Deus é Amor” -, sendo expulso da sua pobre moradia, ainda uma moradia, e vendido por uma miséria para um casal qualquer, onde é, novamente, maltratado e zombado. O fim não poderia ser outro: Oliver acaba fugindo da cidade e encontra, a muitos quilômetros dali, a Londres do século XIX. Oliver! é um longa-metragem que não poderia começar melhor, compartilhando com o espectador um senso de ironia que mascara uma crítica à sociedade, enquanto crianças cantam sobre uma comida deliciosa que nunca consolida-se como a verdade de todos, porém, particular de uma aristocracia – na sequência musical de “Food, Glorious Food”. O cenário comporta a desolação esperada, extremamente cimentado, com um ar, curiosamente, de presídio e indústria que nenhuma cenografia de Londres possuirá. As músicas, ainda mais as primeiras, são excepcionais, com melodias que permanecem – os louros, no caso, são mais destinados à peça original. Quando adentrar na cidade grande, Oliver será convidado a se sentir em casa – em “Consider Yourself”.

Os melhores momentos de Oliver! envolvem esse charme convidativo ao público, enquanto a coreografia e a imensidão de “Consider Yourself”, uma das maiores conquistas de Carol Reed na direção cine-teatral, também coloca Artful Dodger (Jack Wild) no coração dos espectadores. O grande porém do longa-metragem acompanha essa introdução majestosa à Londres, porque Jack Wild canta muito melhor que o cantor contratado para dublar Lester, um tenebroso casting de ator-mirim, porque não cantar é o menor dos seus problemas – Oliver é o personagem menos interessante do seu próprio filme, interpretado por um garoto com pouca demonstração de real capacidade artística, distanciado, dessa forma, do público. O carismático Fagin (Ron Moody), mais para frente, é apresentado juntamente a um número musical que mistura o moralmente condenável com um ludismo empolgante, que, mais uma vez, compõe uma contraposição de ideais interessantes, entre o que deve ser cometido, apesar dos pesares, e como aproveitar uma vida à margem, apesar dos apesares – na gostosa “Pick a Pocket or Two”. O personagem, mesmo possuindo uma aparência decadente, é amistoso, entretanto, transporta podres pessoais consigo.

O ponto de mudança na situação do protagonista acompanha a primeira missão criminosa do pequeno “anti-herói” pelas ruas da cidade, acabando por ser pego injustamente – mas solto porque um pedestre aleatório viu o que aconteceu. Um dos exemplos mais claros de um roteiro desengonçado, demasiadamente passivo à reimaginação no teatro e ao clássico original, é a revelação da origem de Oliver Twist, completamente gratuita. O enredo não se interessa por essa reviravolta, os personagens não são afetados em nenhuma instância por ela, e o relacionamento do Sr. Browlow (Joseph O’Conor) com o garoto ganharia mais camadas caso o menino não fosse um parente distante seu, mas um mero morador de rua. Os meandros narrativos originais não existem, aqui, para justificar essa pontuação do roteiro. Oliver, ademais, desassocia-se do público ao tornar-se parente do seu novo pai – nem todas as crianças com condições precárias são herdeiros perdidos de alguma família abastada. A empatia diminui. O protagonista é o menino, contudo, o segundo ato inteiro do musical o torna um mero macguffin cansado, desenvolvendo os demais personagens e não mais aquele que deveria possuir factualmente o protagonismo.

As inconsistências na narrativa não param. O segundo ato de Oliver! possui uma quantidade muito menor de músicas e em vista da diminuição significativa de uma objetiva importância do presumido protagonista para a narrativa em si, a decisão de recomeçar a obra, após o interlúdio, com um número musical em que o garoto participa indiretamente prova-se um erro. Com a mudança da premissa transformando quem são os sujeitos dessa sentença cinematográfica, passando a ser o perigoso Bill Sikes (Oliver Reed) e a adorada Nancy (Shani Wallis), Reed é incoerente em querer criar, primeiramente, uma nova atmosfera, toda grandiosa, a partir de um personagem, nesse segmento, tão diminuído. O tom do longa-metragem, paralelamente, é igualmente afetado – o cineasta, portanto, precisava ter compreendido essa metamorfose ao espectador. O espetáculo do teatro transposto para as telas do cinema, mesmo sendo um tecnicamente impressionante musical de outros tempos, é uma obra de uma curiosa época em que cantar acabava de ter se tornado enfim anacrônico, para nunca mais deixar de ser. Um conto sobre um outro mundo, contado em um outro mundo, num tempo que não mais se interessava tanto por musicais classicistas como esse.

Oliver! – Reino Unido, 1968
Direção: Carol Reed
Roteiro: Lionel Bart, Charles Dickens
Elenco: Ron Moody, Shani Wallis, Oliver Reed, Harry Secombe, Mark Lester, Jack Wild, Hugh Griffith, Joseph O’Conor, Peggy Mount, Leonard Rossiter, Hylda Baker, Kenneth Cranham, Megs Jenkins, Sheila White, Wensley Pithey, James Hayter, Elizabeth Knight
Duração: 153 min.

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