A difícil jornada de lidar com uma pessoa usuária de drogas na família: desafios e perspectivas. Esse seria o nome de meu artigo científico ou jornalístico sobre o assunto, caso estivesse inserido, na realidade, nos acontecimentos vivenciados pelos personagens da minissérie Onde Está Meu Coração, narrativa seriada em dez episódios, criada por George Moura e Sergio Goldenberg, e protagonizada por Letícia Colin, num desempenho dramático que lhe rendeu uma indicação ao Emmy. Lidar com uma pessoa usuária de drogas na família é uma das experiências mais desafiadoras e dolorosas que uma família pode enfrentar. Os efeitos do uso de substâncias afetam não apenas o indivíduo, mas também todo o sistema familiar, criando um ambiente de tensão, tristeza e incerteza. Um dos principais desafios é o estigma associado ao uso de drogas. Muitas vezes, os familiares se sentem isolados, envergonhados e, em muitos casos, culpados. A sociedade tende a julgar com severidade aqueles que lidam com a dependência, o que pode fazer com que as famílias hesitem em buscar apoio ou compartilhar suas experiências. Essa solidão pode intensificar o sofrimento emocional, levando a um ciclo de negação e desespero. É o que contemplamos na jornada não apenas da protagonista, mas das pessoas que gravitam em torno de sua existência, todas devastadas pela situação que perde o controle completamente.
Além disso, a dinâmica familiar frequentemente se torna problemática. O comportamento da pessoa usuária de drogas pode gerar conflitos, desconfiança e até violência. As relações familiares podem se deteriorar à medida que os membros se dividem entre o amor pela pessoa dependente e a necessidade de proteger a si mesmos e aos outros. A codependência pode se desenvolver, onde os membros da família se tornam tão envolvidos na luta contra a dependência que negligenciam suas próprias necessidades emocionais e físicas. Em uma perspectiva mais ampla, o impacto econômico também é significativo. O custo de drogas, juntamente com possíveis questões legais e de saúde, pode sobrecarregar as finanças familiares. A pressão financeira pode comprometer a capacidade da família de fornecer apoio, criar um ambiente seguro e acessar tratamentos adequados, como terapia e desintoxicação. Esses fatores criam um ciclo vicioso, onde a falta de recursos pode agravar a situação. Esse, por sinal, não chega a ser um problema para Amanda, a protagonista assumida por Colin. E é um dos pontos que torna a minissérie bem interessante: ela é uma médica, de família abastada. Uma mulher branca, o que já é um privilégio em nosso país, utopicamente mergulhado na ideia de democracia racial.
Tudo começa por conta da tentação diante do namorado, o arquiteto Miguel (Daniel de Oliveira). Eles compartilham drogas, até que num determinado momento, experimentam crack. Ele não afunda no vício, mas Amanda fica cada vez mais desestabilizada. A sua residência em um hospital paulista particular se torna um caos. Diferente da dependência do irônico Dr. House ou de Dr. Evandro na brasileira Sob Pressão, a falta de controle e a perda de consciência da protagonista ganham proporções muito maiores. Ela leva, junto consigo, David (Fábio Assunção), o seu pai, já predisposto ao vício por conta de experiências desagradáveis com o alcoolismo no passado, mencionado apenas nas linhas de diálogos, sem intercorrência de desnecessários flashbacks, e de sua mãe, Sofia (Mariana Lima), uma mulher que precisará lidar com os dilemas pesados envolvendo a decadência da filha, além da infidelidade do marido com uma secretaria, situação que se adiciona como subtrama para tornar tudo ainda mais instável.
Cometendo alguns riscos ao inserir tramas extras com coadjuvantes que, em alguns momentos, não adicionam muito ao enredo, Onde Está Meu Coração mantém um padrão dramático de qualidade acima da média, mas quase derrapa em alguns trechos de letargia. A direção de fotografia de Henrique Vale permite a entrega de instantes estéticos primorosos, cuidadosamente estabelecidos diante da delicadeza do tema, demonstrando um nível elevado de visualidade para a trama que conta com a condução sonora de Marcus Klemm e Luís Antônio Rodrigues, também muito eficiente em sua textura melodramática, mas sem apelar para emoções fáceis. Motor, de Gal Costa, e Mora na Filosofia, de Caetano Veloso, também se apresentam como escolhas certeiras, pois adicionam camadas significativas de simbologia no desenvolvimento da trama. Interessante ao se desvencilhar dos estereótipos de representação das drogas apenas em redutos de pessoas em situação de miséria, a minissérie mescla entretenimento com reflexão, permitindo que compreendamos os impactos de diversos tipos quando o assunto é a relação de seres humanos e drogas como o crack. É uma situação onde todo mundo sai perdendo.
O crack é uma forma cristalizada da cocaína e é considerado, por muitos especialistas em saúde, uma substância ainda mais devastadora que a cocaína em pó. Primeiramente, a forma como o crack é consumido contribui para seus efeitos mais intensos e perigosos. A série nos mostra que a droga é frequentemente fumada, o que proporciona uma rápida absorção da substância pelo organismo, resultando em um “barato” quase imediato, bem como muito mais intenso do que o efeito da cocaína em pó quando cheirada. Essa rápida liberação de dopamina no cérebro gera uma sensação extrema de euforia, mas também um retorno à realidade muito mais abrupto e implacável. Enquanto os efeitos da cocaína podem durar de 30 a 90 minutos, com o crack, embora mais intenso, a “onda” é breve, exigindo que o usuário busque a próxima dose com mais urgência. É por isso que contemplamos Amanda transtornada e fisicamente destruída o tempo inteiro, antes de encontrar a sua redenção. Além disso, os usuários de crack frequentemente desenvolvem dependência mais rapidamente. A natureza viciante do crack pode levar a um ciclo contínuo de uso, onde a busca por mais da droga e a satisfação temporária ofuscam as consequências devastadoras para a saúde física e mental do usuário. As crises de abstinência são intensas e difíceis de superar, resultando em um ciclo tenso que é difícil de quebrar.
Nem todos conseguem ter a sorte ou a rede de apoio da protagonista Amanda. É ficção, sabemos, mas algo baseado numa dura realidade, inclusive, brasileira.
Onde Está Meu Coração – Minissérie (Brasil, 4 de maio de 2021)
Criação: George Moura, Sergio Goldenberg
Direção: Noa Bressane, Luisa Lima, José Luiz Villamarim
Roteiro: Sérgio Goldenberg, George Moura, Laura Rissin, Matheus Souza
Elenco: Letícia Colin, Daniel de Oliveira, Fábio Assunção, Mariana Lima, Manu Morelli, Camila Márdila, Bárbara Colen, Rodrigo García, Lola Belli, Rodrigo dos Santos, Grace Passô, Ana Flavia Cavalcanti, Michel Melamed, Cacá Carvalho, Bella Camero, Antônio Benício, Alice Camargo, Thiago Anderson
Duração: 60 min em média por episódio, 10 episódios