A literatura de cordel é uma das mais ricas expressões culturais do Brasil, especialmente no Nordeste. Ela se caracteriza pela utilização de versos rimados e pela associação com a oralidade popular, sendo frequentemente impressa em folhetos que são vendidos em feiras e mercados. Dentro desse universo, destaca-se a figura de Mestre Bule-Bule, um renomado poeta e cordelista, cuja obra é um verdadeiro reflexo da cultura, das tradições e das lutas do povo nordestino. Mestre Bule-Bule, desde muito jovem, mostrou interesse pela poesia e pelas histórias contadas por meio de versos. Influenciado por mestres da literatura de cordel e pela rica tradição oral de sua região, começou a escrever suas próprias composições, que rapidamente conquistaram o público por sua espontaneidade, humor e crítica social. Um dos aspectos mais fascinantes de suas publicações é o seu compromisso com a cultura popular. Seus cordéis abordam temas variados, como a vida cotidiana, a luta pela sobrevivência, mitos e lendas nordestinas. Ele faz uso de personagens típicos e diálogos que refletem a fala e o modo de viver do povo, além de incorporar elementos da música e da pintura popular, agregando um valor estético e educativo às suas obras. Em linhas gerais, a temática social é uma das marcas registradas de sua produção.
Os cordéis de Mestre Bule-Bule frequentemente trazem críticas ao problema da seca, à desigualdade social e às dificuldades enfrentadas pelos mais pobres. Sua capacidade de transformar essas realidades em poesia faz com que suas obras sejam não apenas de entretenimento, mas também de resistência e conscientização. Além de poeta, Bule-Bule se destacou como um grande contador de histórias. Suas apresentações, cheias de expressividade e energia, reúnem multidões e atraem admiradores de todas as idades. Ele utiliza sua voz potente e gestos teatrais para dar vida aos personagens e às tramas de seus cordéis, transformando o desempenho de seu “personagem” em um verdadeiro espetáculo em um verdadeiro espetáculo para aqueles que admiram aspectos cênicos em representações artísticas, afinal, ter presença durante as apresentações é algo fundamental para a literatura de cordel, que sempre esteve ligada à oralidade e à interação com o público.
Outro ponto importante na carreira de Mestre Bule-Bule é sua contribuição para a preservação e divulgação da cultura nordestina. Ele tem sido um ativo defensor das tradições locais, buscando sempre valorizar a identidade regional através de suas obras. Além de escrever cordéis, ele participa de feiras literárias e eventos culturais, onde promove debates e oficinas sobre a importância da literatura de cordel. Dessa forma, ele não apenas fomenta a apreciação da arte, mas também inspira novas gerações de poetas e cordelistas a continuarem essa rica tradição. Sua obra dialoga com as questões mais prementes da sociedade nordestina, proporcionando uma visão crítica e poética da realidade. Tal como os grandes mestres da literatura, ele utiliza sua arte como ferramenta de luta, conservando e promovendo a cultura popular. Por meio de suas rimas e histórias, Bule-Bule nos convida a refletir sobre nossas raízes, nossa identidade e a beleza inerente à vida no sertão nordestino, perpetuando uma tradição que se renova a cada nova geração. A literatura de cordel, assim, permanece viva e pulsante, amplificada pela voz poderosa de mestres como ele. E, em Orixás em Cordel, ele homenageia as nossas tradições e evidencia, ao longo de 98 páginas repletas de ilustrações, a vibrante história das divindades de origem africana, alvejadas constantemente pela intolerância religiosa ainda vigente no Brasil.
Dois elementos de extrema importância simbólica para a cultura brasileira, isto é, a literatura de cordel e a nossa herança africana, em toda sua representação dos baianos e dos nordestinos, podem ser encontrados no livro Orixás em Cordel, de Mestre Bule-Bule, um dos maiores expoentes da cultura popular nordestina. Antônio Ribeiro da Conceição, artisticamente conhecido como Bule-Bule, nos coloca diante de um primoroso trabalho, apresentado em diversos eventos ao redor do nosso país, geralmente elogiado pela criatividade e ineditismo sua proposta literária, que funciona tranquilamente em duas vias: tanto para os leitores diletantes quanto para aqueles que necessitam da pedagogia literária como via de aprendizagem sobre as contribuições africanas para a formação da sociedade brasileira. Com gravuras do amigo Klévisson Viana, também de origem nordestina, escolha que potencializa a musicalidade e a construção das transforma a edição em uma luxuosa seleção de cordéis em capa dura, o material também traz um prefácio do Mestre Mateus Aleluia e a apresentação do poeta e pesquisador Marco Aurélio, textos que poderiam ser mais acessíveis em sua linguagem, haja vista o direcionamento recente da publicação para estudantes de Ensino Médio e leitores que se preparam para o vestibular.
Em Orixás em Cordel, como já mencionado, temos contribuições significativas para a valorização da literatura de cordel e das religiões de matriz africana. Bule-Bule une a literatura de cordel, que é uma forma de expressão popular marginalizada, com as narrativas dos Orixás, que representam a ancestralidade africana. Isso ajuda a resgatar e valorizar elementos culturais que foram historicamente estereotipados. Neste processo, a publicação colabora com o processo de rompimento com a tradição, geralmente a tratar as religiões de matriz africana de forma cômica e preconceituosa. O cordelista apresenta as divindades africanas com respeito e dignidade, desafiando os preconceitos existentes. E, neste esquema, permite o estabelecimento de uma interessante estratégia de inclusão social, ao abordar temas relacionados ao âmbito religioso em questão, promovendo a inclusão de grupos sociais que foram historicamente marginalizados, como os negros e as mulheres. Ele apresenta personagens femininas fortes, como Iemanjá e Oxum, que são protagonistas de suas próprias histórias, desafiando a visão patriarcal. Além disso, o livro também serve como uma ferramenta educativa, promovendo o conhecimento sobre as religiões afro-brasileiras, numa eficiente proposta de reflexão sobre intolerância religiosa.
Bule-Bule enfatiza a importância de entender e respeitar essas tradições, contribuindo para a conscientização social. Ele utiliza as rimas e a estrutura da literatura de cordel para contar as histórias dos Orixás, estabelecendo uma conexão entre a forma literária e o conteúdo cultural. Isso não só enriquece a literatura de cordel, mas também a torna acessível a um público mais amplo. Só não é mais acessível por conta de seu custo de aquisição, afinal, qual estudante de origem mais humilde pode arcar com R$100 apenas pela edição de um dos livros selecionados para os seus estudos na dinâmica dos vestibulares. Neste caso, com toda a valorização que a obra precisa e merece, era preciso um pouco mais de cautela no quesito “acessibilidade”. Dando continuidade, importante observar que ao longo das páginas de Orixás em Cordel, podemos contemplar o seu conteúdo como um caminho reflexivo para a importância da nossa reparação histórica, pois traz à tona a mitologia africana de maneira respeitosa, corrigindo a narrativa negativa que muitas vezes cercou as religiões de matriz africana na literatura. E, outro ponto curiosamente interessante, é que Bule-Bule também contribui para a inclusão de autores e temas que estão à margem do campo literário tradicional, promovendo um debate mais inclusivo e diversificado nos estudos literários.
Tais contribuições fazem de Orixás em Cordel uma publicação fundamental para a valorização tanto da literatura de cordel quanto das religiões de matriz africana, promovendo um diálogo entre a cultura popular e a academia, e ajudando a construir um conhecimento decolonial. A leitura é fluente, agradável, assertivamente ilustrada pelas belas imagens de Klévisson Viana, outro artista que merece uma análise do seu trabalho por um viés das artes visuais, tamanha a beleza de sua contribuição para o livro do cordelista. Os orixás na narrativa de Bule-Bule são representados através de histórias que destacam suas características, rivalidades e relações complexas, como a luta entre divindades e a conexão com os humanos. A obra utiliza a literatura de cordel para contar mitos e lendas, resgatando a ancestralidade e a importância cultural dos orixás na sociedade brasileira. Além disso, Bule-Bule enfatiza a justiça, a sabedoria e as emoções associadas a cada orixá, promovendo uma reflexão sobre preconceitos e intolerância. O poético mestre do cordel, então, por meio de seu livro, contribui para a representação dos orixás na literatura de cordel ao integrar narrativas africanas com esse formato literário popular no âmbito nordestino, elevando a importância cultural e religiosa dos orixás. Ele resgata e respeita os mitos, apresentando-os de maneira digna, em contraste com a abordagem cômica que costumava ser comum. Além disso, sua obra preenche uma lacuna na literatura de cordel, promovendo a valorização do candomblé e combatendo a intolerância religiosa.
Aqui, a memória iorubá remete a narrativas cosmogônicas e à comunicação entre divindades e humanos. Os humanos são considerados descendentes dos orixás, diferentemente da narrativa cristã. A figura do herói na epopeia é reconhecida por suas ações em prol do povo, num livro que é um espetáculo de visualidade e construção poética. Livros assim nos ajudam a mediar a aprendizagem entre os jovens, reforçando que a cultura brasileira é um rico mosaico de influências que refletem a diversidade étnica e histórica do país. Entre as contribuições mais significativas está a herança africana, que se manifestou de diversas formas, especialmente através dos Orixás. Os Orixás são entidades divinas que representam forças da natureza, aspectos da vida humana e, acima de tudo, são manifestações da espiritualidade africana. Essa herança cultural é essencial para a identidade nacional e não deve ser alvo de intolerância, especialmente por parte dos adeptos do cristianismo, que também têm raízes nas tradições de fé Os Orixás, oriundos de religiões afro-brasileiras como o Candomblé e a Umbanda, são entendidos como intermediários entre os humanos e o divino.
Cada Orixá tem suas características, cores, elementos associados e mitos que refletem a sabedoria de uma cultura que valorizava a natureza e seus ciclos. Por exemplo, Oxóssi é o Orixá da caça e da abundância, enquanto Yemanjá é a deusa do mar, representando a maternidade e a fertilidade. Essas representações não só demonstram a conexão com a natureza, mas também trazem ensinamentos sobre a convivência, o respeito e a solidariedade. Com a chegada dos europeus e a subsequente colonização, houve uma tentativa sistemática de apoucar as tradições africanas, levando muitos adeptos a inserirem suas crenças nos moldes do cristianismo para garantir a sobrevivência de sua espiritualidade. Assim, muitas tradições e rituais foram sincretizados com figuras cristãs, o que gerou um contexto de resistência cultural. No entanto, o respeito mútuo entre as diversas tradições religiosas é fundamental para a convivência pacífica. A intolerância religiosa, que muitas vezes se manifesta em ataques aos terreiros e práticas de culto, vai de encontro aos princípios cristãos de amor e respeito ao próximo. Contraditório, não? Este tema, por sinal, é tangenciado pelo escritor Gildeci Leite em A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento, publicação recente que versa sobre celeumas similares.
É válido ressaltar que a diversidade cultural brasileira, em que as tradições indígenas, africanas e europeias coexistem, ajudam a enriquecer a prática religiosa e a vida social do país. O diálogo inter-religioso pode e deve ser promovido, pois oferece uma oportunidade para que adeptos de diferentes fés entendam e respeitem uns aos outros. No contexto do cristianismo, que prega a inclusão e o amor ao próximo, é paradoxal e inaceitável que religiosas afro-brasileiras ainda sofram discriminação e preconceito. Os Orixás, por sua vez, não são apenas deidades, mas representam valores e princípios que são universais, como a justiça, a compaixão e o respeito. Por isso, é essencial que as novas gerações sejam educadas sobre a importância da diversidade cultural e religiosa. Além disso, a promoção de eventos culturais que celebrem a herança africana, bem como a inclusão de estudos sobre as religiões afro-brasileiras nas escolas, pode contribuir para desconstruir mitos e estigmas. Ao abrir espaço para a compreensão e a valorização da cultura afro-brasileira, criamos um ambiente propício ao respeito e à convivência harmoniosa. Ler Orixás em Cordel, de Bule-Bule, me levou a refletir sobre tudo isso. E você, caro leitor, já parou e refletiu sobre a pertinência desta temática?
Orixás em Cordel (Brasil, 2021)
Autor: Mestre Bule-Bule (com ilustrações de Klévisson Viana)
Editora: Tupynanquim Editora
Páginas: 96