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Crítica | Os Acarnianos, de Aristófanes

A arte de remar contra a maré... e se sair bem!

por Luiz Santiago
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O Festival Leneana (também chamado de Leneia ou Lênea) era comemorado na Grécia Antiga, mais especificamente em Atenas e na Jônia, sendo um dos muitos festivais dedicados aos deuses que haviam nas Cidades-Estados helênicas. No Leneana, a comemoração era em homenagem ao deus Dionísio, deus da colheita da uva, da vinificação, do vinho, da fertilidade, dos pomares e frutas, da vegetação, do êxtase religioso, das festas e do teatro. Dentre os inúmeros epítetos de Dionísio estava o de Lenaio (ou Lenaius), que significa “deus do lagar” (oficina com os aparelhos adequados para espremer certos frutos [uva, azeitona], reduzindo-os a líquido), e é por isso que muitas vezes pode-se encontrar a indicação de que esta festividade era para um tal de “Dionísio Lenaio“. Lembre-se: não se trata de um deus diferente. É Dionísio mesmo, acompanhado de um de seus apelidos. Pois bem, o Festival Leneana tinha como essência as competições dramáticas. E foi em um desses feriados, no ano de 425 a.C., que Aristófanes estreou a sua peça Os Acarnianos (obra também chamada de Acarnânios, Acarnenses ou Arcanienses), chegando a vencer a competição do Festival.

Acarnianos é a mais antiga peça de Aristófanes que chegou integralmente até nós (ele havia escrito duas peças antes dessa: Os Banquetes e Os Babilônios, em 427 e 426 a.C., respectivamente), sendo também a mais antiga comédia da literatura grega que chegou inteira ao nosso tempo. O seu título vem diretamente do grupo de pessoas que fazem parte do Coro, ou seja, pessoas idosas e camponesas originárias da Acárnia (ou Acarnânia), que na Antiguidade era a região centro-oeste da Grécia. Integrando o período que chamamos de Comédia Antiga (486 – 400 a.C.), Os Acarnianos se passa no 6º ano da Guerra do Peloponeso (431 – 404 a.C.), travada entre Atenas e Esparta. Em sua peça, Aristófanes puxa o humor através de uma crítica ferrenha os governantes, aos intelectuais, aos militares e à população alienada que apoiava cegamente a guerra… sem nem saber por quê.

O que salta aos olhos, inicialmente, é a divisão da sociedade frente ao tema. A peça começa com a fala do herói, poeta e protagonista Diceópolis (“cidadão justo“), um camponês que está cansado das privações e dos medos causados pela guerra e vai à Assembleia para pedir paz, quando então é ameaçado e enxovalhado pelo Coro e por outros cidadãos. Expondo de imediato os pontos negativos do conflito para os cidadãos de Atenas e das cidades ao redor, Diceópolis provoca a ira dos políticos — que, assim como o povo, chegaram atrasados para a reunião do dia — e mostra a estupidez de todos aqueles que clamam pelas batalhas apenas para sustentar seu orgulho e não contradizer a maioria das “vozes sociais“, o povo em seu pensamento bélico e sem sentido, abraçado aos desastres diários que são consequências desse mesmo pensamento. A coragem de Diceópolis é acompanhada por um forte desejo de convencer a Assembleia a assinar um acordo de paz com os espartanos (também chamados de lacedemônios). Através de elementos narrativos metalinguísticos e do uso da parábase (na comédia grega, ocasião em que o Coro se afastava da ação teatral e se dirigia diretamente ao público, abordando temas políticos e sociais) o poeta ergue o seu discurso pacifista e consegue provar para todos que estava certo.

SEGUNDO SEMICORO – É certo. Por Poseidon, o que ele disse é pura verdade.
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PRIMEIRO SEMICORO – E mesmo se for verdade, ele não precisava dizer isso. Essa ousadia vai custar caro.

Só o fato de a gente pensar em um personagem que, sozinho, fecha um acordo de paz apenas para ele e sua família já é base para muitas possibilidades de discussão dentro da história. O riso, aqui, vem dos encontros travados entre Diceópolis e os mais diversos cidadãos da pólis, indivíduos dentre os quais se destacam Eurípedes (sim, o grande poeta e tragediógrafo grego) e Lâmaco (general ateniense). Em dado momento da peça, Diceópolis pede ajuda a Eurípedes para criar uma persona capaz de convencer a Assembleia, emprestando o figurino e diversos outros adereços do poeta trágico, numa sequência muito engraçada e que pode ser uma crítica à forma como Eurípedes compunha os seus personagens ou uma ode à sua inversão dos códigos da tragédia, transformando os trapos de indivíduos com terríveis destinos em roupas de esperança, com as quais algo político e necessário deveria ser feito… nem que fosse apenas em interesse próprio.

É evidente que, ao analisarmos uma comédia escrita há tanto tempo, existem códigos e elementos narrativos que são muito próprios desse período e que podem parecer estranhos para um leitor contemporâneo. Todavia, muitos caminhos cômicos utilizados pelo poeta aqui ainda permanecem em nossos dias, coisas que vão de piadas sexuais, comédia física (lembrando o pastelão) e sátira até a inserção de absurdos no decorrer de uma situação, fazendo com que o herói da peça termine bem e que seus valores sejam apreciados por aquilo que construiu de bom — um padrão que veremos nos outros trabalhos de Aristófanes, ao lado do tema “guerra e paz“. Aqui em Os Acarnianos, o comediógrafo mostra o poder de uma opinião socialmente benéfica em meio a um rebanho sustentando uma posição socialmente destrutiva; muitos por medo de mudar de posição e ser rejeitado pelo grupo.

Embora traga uma clara atmosfera de “fim“, a última cena da peça deixa um estranho sabor reticente no leitor. Imagino que algumas montagens consigam contornar isso com um pouco de música ou algumas brincadeiras em cena. É um final esperado para uma comédia desse porte, com o grande militar que exaltava a guerra morrendo de inveja do camponês que queria a paz… e agora goza de todas as coisas boas que um bom tratado pode trazer. Ah, se pudéssemos fazer algo assim na realidade: criar uma trégua apenas para nós e nossa família, separando-nos da realidade atroz que nos cerca. Se do lado político e social estamos em par com aquilo que Aristófanes escreveu em Acarnianos, nossa conjuntura termina nos negando a necessária parte da fuga. Na democracia que temos, o que nos resta é esperar que muita gente esteja imbuída do espírito de Diceópolis e consiga transformar o presente através do voto e de ações pessoais que façam de seu pequeno mundo um lugar um pouco melhor para si e para os outros. Não sem antes mostrar para os fanáticos e belicistas o que eles perderam apoiando “o lado errado da História“.

Acarnianos / Acarnânios / Arcanienses (Ἀχαρνεῖς) — Grécia, 425 a.C.
Autor: Aristófanes
Edição lida para esta crítica: As Tesmoforiantes & Os Acarnianos
Tradução: Jaime Pedrini
115 páginas

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