História Alternativa é um fascinante subgênero da ficção científica que parte de uma pergunta do tipo “o que aconteceria se…” no panorama geopolítico mundial macro ou micro e parte para desenvolver uma resposta. Como era de se esperar, há diversas obras que tratam das consequências da vitória das forças do Eixo na Segunda Guerra Mundial (como O Homem do Castelo Alto de maneira mais ampla e Pátria Amada de maneira mais restrita, na forma de um romance policial), mas há muitas outras que discutem hipóteses muito diferentes e igualmente interessantes, como Tirant lo Blanch, de 1490, que imagina um cenário em que o Império Otomano não toma Constantinopla, Pavana, de 1968, que parte do assassinato da Rainha Elizabeth I para levar os leitores a um mundo em que o protestantismo na Inglaterra foi suprimido ou Século Asteca, de 1994, em que Cortez muda de lado e impede a colonização espanhola das Américas, tornando possível o desenvolvimento tecnológico do Império Asteca. E isso só para citar alguns poucos.
De todas as obras nessa linha que tive oportunidade de ler, Os Anos de Arroz e Sal – minha tradução literal do título em inglês já que ela não foi lançada por aqui quando da publicação da presente crítica -, do autor americano Kim Stanley Robinson, é de longe a mais expansiva e completa dentro da premissa que ele estabelece, premissa essa que é simples, mas ao mesmo tempo absolutamente fascinante e com ramificações imensas. Robinson indaga o que aconteceria se a Peste Bubônica do século XIV que, em nosso mundo, dizimou metade da população da Europa da época, acabasse com 99% dessa população, impedindo toda e qualquer influência dos reinos europeus na história que conhecemos. Estamos falando da quase completa eliminação dos povos europeus da geopolítica mundial antes das chamadas Grandes Navegações, antes do final da Reconquista e muito antes da colonização do continente africano, da Oceania e assim por diante. Robinson, então, inteligentemente preenche o vácuo europeu no mundo com outros povos que teriam sua marca suprimida por séculos, notadamente os árabes, os chineses e os indianos.
Como o romance de Robinson se passa ao longo de séculos e em praticamente todos os continentes, o autor construiu uma estrutura que o permitiu abordar situações temporais e espaciais tão díspares sem se preocupar em uma continuidade muito próxima, ou seja, valendo-se de histórias razoavelmente autocontidas a cada gigantesco salto temporal que ele precisa dar. Dessa forma, Os Anos de Arroz e Sal é composto de 10 livros ou tomos, o primeiro apresentando o cenário da devastação na Europa pelos olhos de Bold, batedor do exército de Timur, o conquistador turco-mongol, que encontra uma cidade magiar (hoje na Hungria) completamente vazia, permanecendo pela região mesmo depois que o exército dá meia volta para evitar a praga, o que o leva até a China depois que é capturado e vendido como escravo, estabelecendo amizade com o jovem Kyu, escravo oriundo da África. Trata-se de um primeiro capítulo contextualizador que fornece ao leitor tudo aquilo que ele precisa para compreender o início dos planos de Robinson, algo que vem de verdade à tona quando, já no segundo tomo, o leitor é transportado algo como duzentos anos para o futuro, no Império Mughal, no que hoje é parte da Índia, Afeganistão e Bangladesh, com a apresentação de uma nova dupla de protagonistas, as amigas Kokila e Bihari, que, depois de morrerem, reencarnam como Kya e Bistami, o primeiro um tigre que salva ao segundo.
E o artifício da reencarnação é o que une cada grande capítulo, pois Robinson, como é perceptível pelos nomes acima, sempre utiliza duplas de personagens, um com a inicial K e outra com B nos nomes para indicar essa continuidade espiritual que é vista de maneira explícita nos intervalos, por assim dizer, entre saltos temporais e espaciais, no chamado bardo, um estado intermediário entre a morte e o renascimento em algumas escolas budistas. Diria que essa escolha do autor está mais para um preciosismo estilístico que reflete seu interesse pessoal no budismo do que algo que seja realmente necessário para o livro funcionar. No entanto, o uso do bardo por breves momentos entre tomos não é, de forma alguma, algo que atrapalhe a leitura ou diminua a fluidez e curiosidade do que Robinson vai aos poucos criando em seu mundo alternativo em que os muçulmanos de maneira menos coordenada por lhes faltar um império único, os chineses de forma bem mais estruturada em razão justamente da força de seu império e, depois, tardiamente, pela tecnologia dos indianos (brevemente prenunciada pela dos samarcandos no que hoje é o Uzbequistão).
Há uma sólida lógica para os acontecimentos que o autor vai aos poucos descrevendo sempre mais preocupado com questões sociais e econômicas do que exatamente com religiosas ou científicas, com seu texto alcançando também o Japão e a América do Norte, ainda que ele acabe “sacrificando” a América do Sul, falando apenas muito brevemente no Império Inca, a África que não é mencionada fora do que é conectado com as culturas que ele aborda, e a Oceania, que ele sequer menciona. Mas faz sentido, pois Os Anos de Arroz e Sal já é longo o suficiente com o material que é discutida e tenho para mim que, proporcionalmente, a obra ganharia muito pouco com as páginas necessárias para lidar com mais essas localidades e todas as suas especificidades. Não que, um dia, Kim Stanley Robinson não possa lançar obras que preencham esses espaços “em branco” que ele deixou no seu mundo sem a dominação europeia, pois eu sei que eu as leria avidamente!
Créditos da arte: Everett Patterson
Os Anos de Arroz e Sal (The Years of Rice and Salt – EUA, 2002)
Autoria: Kim Stanley Robinson
Editora: Bantam Books
Data original de publicação: março de 2002
Páginas: 784
