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Crítica | Os Eleitos

por Ritter Fan
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A carreira de Philip Kaufman é relativamente curta, mas definitivamente variada. Já escreveu roteiros para faroestes como Josey Wales, o Fora da Lei, foi o argumentista que ajudou a criar a célebre franquia Indiana Jones e, na direção, trouxe à luz filmes como o terror sci-fi Invasores de Corpos e o drama romântico/erótico A Insustentável Leveza do Ser. No entanto, seu melhor e mais completo trabalho talvez seja mesmo Os Eleitos, épico histórico baseado no sensacional romance jornalístico-biográfico The Right Stuff que Tom Wolfe lançara em 1979 lidando com o início da Corrida Espacial sob o ponto de vista dos pilotos que a antecederam e também dos que fizeram parte do Projeto Mercury, os chamados Mercury Seven.

O grande trunfo do longa que Kaufman adaptou e dirigiu está na capacidade de o cineasta contar uma história só sob dois enfoques simultâneos, um deles reverencial aos homens que corajosamente arriscaram suas vidas para domar as máquinas e outro crítico – com sub-texto satírico – à forma como tudo aconteceu, com cientistas correndo atrás do prejuízo e um governo muito mais interessado em publicidade do que nos atos heroicos de um punhado de pilotos de teste. Para conseguir essa façanha, o cineasta soube transpor o contraste entre Chuck Yeager (Sam Shepard), o primeiro homem a ultrapassar a barreira do som, e os pilotos que foram escolhidos para o então ainda incipiente programa espacial americano que Wolfe faz em seu livro, criando tramas que se mantêm paralelas, mas que conversam entre si e comentam uma a outra.

Não é sem querer, portanto, que Kaufman investe pesadamente em um preâmbulo alongado focado quase que exclusivamente em Yeager na base de Edwards, no Deserto de Mojave, em uma abordagem lírica e metafórica em que coloca o piloto domando a máquina – no caso o avião Bell X-1 – para vencer o “demônio do ar” presente na mítica barreira do som. O piloto – ainda vivo, hoje brigadeiro-general aposentado e que faz uma ponta como Fred, atendente do lendário bar Happy Bottom Riding Club de Pancho Barnes (Kim Stanley) – ganha uma vestimenta de lenda em seu próprio tempo, de homem estoico e extremamente corajoso, capaz de tudo não por fama ou dinheiro, mas sim por simplesmente ser o pioneiro, um verdadeiro cowboy das fronteiras em seu Destino Manifesto, com direito até mesmo a ele montando seu cavalo e a poderoso trilha sonora de Bill Conti estabelecendo o contraste entre o antigo e o novo, entre o passado e o futuro que ele ajuda a construir, sempre sob a ameaça da morte, aqui literalmente encarnada por um sempre presente pastor vestido de terno preto (Royal Dano).

Esse início quase filosófico da obra serve de introdução aos sete pilotos que, então, viriam a ser selecionados para o Programa Mercury que tem como catalisador histórico o lançamento do satélite Sputnik pelos soviéticos, em 04 de outubro de 1957, iniciando a Corrida Espacial. O que Kaufman faz, então, é tornar fácil ao espectador a detecção da literal troca de marcha que ele faz ao deixar Yeager momentaneamente de lado para lidar com os tropeços, as confusões, os testes físicos e clínicos inadvertidamente hilários por que passam os futuros astronautas, sempre sob a “ameaça vermelha” que o diretor inteligentemente deixa em segundo plano, usando imagens chave apenas para marcar a temporalidade da narrativa.

No entanto, Yeager continua sendo utilizado na narrativa de mais de três horas quase que como um fiel da balança, com o foco por vezes retornando ao deserto para observar as reações do piloto aos acontecimentos, ora mostrando-o como arrependido, ora como orgulhoso e outras vezes ainda como o retorno ao contraste entre o velho e o novo. O que antes era o homem domando a máquina, torna-se a máquina domando o homem, algo que a comparação dos astronautas com chimpanzés bem treinados não deixa qualquer dúvida. Mas é importante saber separar o joio do trigo, pois Kaufman não tem a menor intenção de lidar desrespeitosamente com os sete homens que aceitam basicamente ficar sentados em cima de um gigantesco reservatório de combustível volátil. O lado heroico é muito saliente, mas que o cineasta sabe usar exatamente para criticar o programa espacial que é visto como uma colagem de ideias pensadas às pressas, arriscando vidas por um jogo político internacional que, em última análise, vendo-o em retrospecto, parece brincadeira entre duas crianças mimadas.

O lado humano da narrativa é extremamente importante e Shepard consegue encarnar um Yeager de lenda, permanentemente usado como a base pela qual os demais são comparados. E esses demais – especialmente o Virgil I. “Gus” Grissom de Fred Ward, o Gordo Cooper de Dennis Quaid, o John Glenn de Ed Harris e o Alan Shepard de Scott Glenn – ganham espaço no épico de Kaufman, com suas personalidades expansivas e sua união preponderando e encantando imediatamente, ainda que sob a sombra de Yeager, mantido em uma espécie de pedestal até que o próprio personagem bate o martelo sobre o valor intrínseco dos astronautas.

O grande objetivo de Kaufman é marcar esse grande momento histórico de transição humana e tecnológica, em que o herói “puro”, por assim dizer, abre espaço para o herói midiático, para a figura que não só representa um ideal, como também um país em uma fascinante briga de bastidores. Os comentários cáusticos sobre a ineficiência do programa, dos testes e da colocação dos pilotos como meras engrenagens de algo muito maior estão todos lá, fazendo a obra flutuar de seu enfoque mítico, filosófico, quase lisérgico, do começo para a sátira ferina e cuidadosa para acertar o alvo pretendido, tudo debaixo de uma abordagem semi-documental com a fusão de imagens reais com outras criadas para o filme (por vezes lembrando o que Robert Zemeckis faria em Forrest Gump) e alteração de razão de aspecto para pronunciar essa característica, além da uma belíssima fotografia Caleb Deschanel que imprime um caráter realmente épico à empreitada.

O uso de personagens quase que 100% caricatos é outro fator que ajuda nesse choque entre as duas maneiras simultâneas de se contar a mesma história. Os recrutadores vividos por Harry Shearer e Jeff Goldblum são os maiores exemplos disso, correndo de um lado para o outro para trazer candidatos à astronautas e sempre trazendo notícias atrasadas. O mesmo pode ser dito de Donald Moffat e seu vice-president Lyndon B. Johnson que dá ataques quando a esposa de John Glenn se recusa a participar de publicidade com ele e assim por diante. O heroísmo é, em suma, apropriado por jornalistas, burocratas e tecnocratas em uma corrida que, se não chega a ser vista como cômica, aproxima-se muito desse tom, mas – e eu reitero – sem jamais diminuir os feitos dos pilotos de teste enfocados na obra, mesmo que Guss Grisson acabe sendo visto sob uma luz negativa, algo que gerou polêmica inclusive na época de lançamento do livro de Wolfe.

Os Eleitos é um triunfo narrativo que festeja os feitos da humanidade ao mesmo tempo que condena a humanidade justamente por não saber festejar seus feitos. É quase uma contradição em termos, mas Kaufman trafega com muita elegância no fio da navalha ao longo de toda a duração da fita, em uma belíssima abordagem multifacetada e atemporal de um dos mais interessantes momentos da história moderna.

Os Eleitos (The Right Stuff, EUA – 1983)
Direção: Philip Kaufman
Roteiro: Philip Kaufman (baseado em livro de Tom Wolfe)
Elenco: Sam Shepard, Fred Ward, Dennis Quaid, Ed Harris, Scott Glenn, Lance Henriksen, Scott Paulin, Barbara Hershey, Veronica Cartwright, Jane Dornacker, Harry Shearer, Jeff Goldblum, Kim Stanley, Pamela Reed, Charles Frank, Donald Moffat, Levon Helm, Mary Jo Deschanel, Scott Wilson, Kathy Baker, Mickey Crocker, Susan Kase, Mittie Smith, Royal Dano, David Clennon, Scott Beach, John P. Ryan, Eric Sevareid, William Russ, Robert Beer, Peggy Davis, John Dehner, Royce Grones, Chuck Yeager, Anthony Muñoz, David Gulpilil
Duração: 193 min.

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