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Crítica | Os Inconfidentes

por Luiz Santiago
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Lesa-majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do Rei, ou seu Real Estado, que é tão grave e abominável crime, e que os antigos Sabedores tanto estranharam, que o comparavam à lepra; porque assim como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem, e aos que ele conversam, pelo que é apartado da comunicação da gente: assim o erro de traição condena o que a comete, e empece e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa.

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A Inconfidência ou Conjuração Mineira é um dos eventos mais conhecidos da história do Brasil. Ocorrido na Capitania de Minas Gerais, o movimento tinha como objetivo a separação das terras mineiras do poder de Portugal. Essa independência, que não contava com a libertação dos escravos, tinha como ideia, além de outras coisas, uma maior liberdade de comércio e produção da indústria nacional, ao invés da subserviência aos moldes comerciais lusitanos, que impedia qualquer iniciativa mais efetiva de criar-se uma produção brasileira, bem como tomar as rédeas de uma troca comercial mais dinâmica e plural.

No bloco das insatisfações populares com o governo português, forças de diversas etnias e interesses vinham se manifestando através dos anos. Movimentos importantes como a Conjuração Baiana (1798) e a Revolução Pernambucana (1817) são exemplos que mostram, em linhas gerais (é importante ressaltar que há motivações muito específicas em cada um dos locais), a mesma insatisfação e ideias emancipadoras dos mineiros, e nos três casos, a repressão e resultados foram suplantados violentamente pela Coroa. Em tempos de Iluminismo e com revoltas pipocando por todo o restante da América (destaque para a independência dos Estados Unidos), não era de se espantar que o Brasil tivesse também a sua dose de revolta contra a metrópole.

Com uma concepção cinematográfica bastante ligada à literatura e à história do Brasil, Joaquim Pedro de Andrade filmou os eventos da Inconfidência Mineira, naquela que é considerado por muitos, críticos e historiadores, a melhor versão de cinema para o evento: Os Inconfidentes (1971).

Focando a estrutura narrativa do filme apenas para nos bastidores da conspiração, Joaquim Pedro e Eduardo Escorel apresentam um roteiro criativo, dialético e baseado nos Autos da Devassa (documentos que dão conta de todas as buscas, investigações e informações sobre os acusados de conspirarem contra a Coroa), de modo que o filme tem a prisão como ponto de vista, além da forte veia poética vinda de versos escritos por Cecília Meirelles (Romanceiro da Inconfidência), Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Cláudio Manuel da Costa.

Os Inconfidentes tem um início que demora um pouco para mostrar a que veio. O espectador, que geralmente espera uma representação dramática da Inconfidência, estranha as declamações poéticas, os diálogos com forte conotação política ou doses de lirismo. Enquanto são apresentados os personagens e contextualizado o evento, não temos na tela nada demais. É só depois dos primeiros 20 minutos que o espectador enfim entende a dinâmica proposta pelo diretor e começa a aproveitar o seu funcionamento.

Tiradentes deixa de ser o foco central da narrativa e os poetas ganham maior espaço. Através de revelações políticas dos acusados, vamos construindo aos poucos não só a posição ideológica ou o retórico engajamento desses homens na luta por um Brasil melhor (segundo suas concepções), mas também a psicologia desses atores históricos, seus amores, lembranças, fantasias. A musa Marília, sempre e devidamente muda, inspira e é motivo de delírio ou sonho em um dos momentos mais belos do filme. Aqui, ela serve como motivação passional mas também como utopia, espelho refletindo a relação do movimento com o tipo de país que pretendia para aquele pedaço da História do Brasil.

O diálogo com o passo — visto de longe — e as comemorações civis em torno do feriado de Tiradentes foi uma irônica sacada de Joaquim Pedro de Andrade, que traz para o seu público a disparidade entre as convicções e posições do passado, e os louvores feitos nos dias de hoje. Antes de tudo, Os Inconfidentes é um filme sobre a memória histórica. O modo como se conta e perpetua o heroísmo ou demonização de alguém ou um acontecimento constituem a intenção final da obra, que além de ser bem dirigida (e com notável esmero estético) traz uma forte crítica e um convite para que o público busque as raízes do que ouviu contar. Definitivamente um filme para se estudar História do Brasil Colonial.

Os Inconfidentes (Brasil, 1972)
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, Eduardo Escorel (baseado em poemas de Tomas Antonio Gonzaga e Cecília Meireles).
Elenco: José Wilker, Luiz Linhares, Paulo César Peréio, Fernando Torres, Carlos Kroeber, Nelson Dantas, Carlos Gregório, Fábio Sabag, Wilson Grey, Roberto Maya, Margarida Rey
Duração: 100 min.

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