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Crítica | Os Inocentes (1961)

por Rafael Lima
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A noveleta A Volta do Parafuso, publicada por Henry James em 1898 é um clássico da literatura gótica, já tendo sido adaptado algumas vezes para o cinema e para a TV. Entretanto, nenhuma das adaptações se tornou tão influente quanto Os Inocentes, dirigido por Jack Clayton em 1961, com Deborah Kerr no papel principal. Na trama, a Srta. Giddens (Kerr) é contratada por um homem rico (Michael Redgrave) para assumir a função de governanta na Mansão Bly, uma residência no interior da Inglaterra onde vivem os sobrinhos do homem. Chegando lá, a nova governanta logo se afeiçoa às duas crianças; a pequena Flora (Pamela Franklin), e o jovem Miles (Martin Stephens), este último recentemente de volta do colégio interno, após ser expulso em circunstâncias misteriosas. À medida em que as semanas passam, a Srta. Giddens começa a perceber inexplicáveis fenômenos em torno de Miles e Flora, que somado ao comportamento estranho dos irmãos, a leva a crer que existe algo sobrenatural influenciando-os.

Escrito por William Archibald e Truman Capote (com este último tendo entrado no projeto para inserir maior ambiguidade ao texto), Os Inocentes abre com a personagem de Kerr em uma oração, onde ela afirma o seu amor pelas crianças e o desejo de salvá-las de um mal desconhecido, em uma cena que nos revela uma mulher extremamente assustada, mas também aparentemente instável, dando ao espectador uma sensação ambígua que irá se aprofundar no restante da projeção. Raramente abandonando o ponto de vista da Srta. Giddens, o roteiro introduz a Mansão Bly como um lugar amigável, e Flora como uma criança esperta e angelical, ainda que apresentem alguns elementos de estranhamento desde o momento em que a governanta põe os pés na propriedade. À medida em que a história avança, a narrativa insere elementos discretos que sugerem que há algo sombrio em Bly, como sussurros noturnos ouvidos pela governanta, ou Flora acordando no meio da noite para ficar vendo a sua babá dormir. 

As coisas se tornam mais intensas a partir do momento em que o menino Miles (inicialmente tão adorável quanto Flora) retorna para casa e a Srta. Giddens começa a descobrir sobre o escandaloso passado recente da mansão, envolvendo o faz-tudo da casa e a antiga governanta, ambos já falecidos. Essa intensidade, entretanto, representada por vislumbres que a protagonista tem dos dois empregados mortos e pelo comportamento mais abertamente excêntrico do menino ainda são muito sutis, fazendo-nos questionar se as crianças estariam sofrendo influência sobrenatural, como acredita a governanta, ou se ela estaria simplesmente mergulhando em um espiral de loucura e paranoia.

A história nos dá abertura para acreditar que de fato exista algo sobrenatural ocorrendo na Mansão Bly, mas através de pequenos detalhes muito bem colocados pelo roteiro, tanto os supostos eventos sobrenaturais presenciados pela Srta. Giddens quanto o comportamento estranho das crianças também possuem explicações perfeitamente racionais. A própria construção dos personagens apoia essa ambiguidade que é tão perseguida pelo filme. Reparem, por exemplo, como em um rápido comentário da protagonista sobre a sua relação com o pai, é possível perceber a criação autoritária e repressiva que ela teve, ou como o tio das crianças decididamente não se importa com elas ao sequer abrir a carta enviada da escola do menino, entregando-a diretamente para a governanta.

Jack Clayton, que brigou tanto para que a ambiguidade estivesse presente no roteiro, insere-a com força na direção. Todos os supostos eventos sobrenaturais testemunhados por Giddens são, em sua maior parte, muito sutis, não apelando para jump scares ou grandes efeitos especiais. É interessante observar como mesmo os fenômenos sobrenaturais mais explícitos são filmados com certo distanciamento, sempre colocando essas aparições fantasmagóricas vistas à distancia ou com uma barreira entre elas e a protagonista. Ao longo da obra, Clayton contrasta imagens de inocência e pureza com elementos de morte, selvageria e escuridão, vide o inseto que sai de dentro de uma estátua, ou a própria cena de abertura, onde as mãos de Giddens segurando um rosário tem o breu como fundo. Os Inocentes, lida fortemente com o tema da corrupção da pureza, mas ao utilizar muitas vezes imagens da natureza para retratar isso, parece defender que o mal sobrenatural combatido por sua protagonista seja apenas um processo natural do crescimento das crianças, ou em alguns casos uma reação psicológica aos recentes traumas enfrentados por elas.

A fotografia em preto e branco ficou a cargo de Freddie Francis, que concede uma elegância ímpar para a obra, com o forte contraste entre luz e sombras nas passagens noturnas não sendo apenas incrivelmente atmosférico, mas dando um aspecto quase onírico ao visual do longa, especialmente nas sequências onde algo incomoda a governanta, nos fazendo, portanto, duvidar do seu ponto de vista. A trilha sonora e o desenho de som são também grandes trunfos do projeto. A mósica O Willow Waly, que abre o filme e que é constantemente cantarolada por Flora, é linda e arrepiante: uma cantiga sinistra que casa perfeitamente com a dicotomia entre a inocência e as trevas proposta pela produção. A trilha sonora é discreta, no geral, servindo como um complemento aos sons ambientes de Bly, como o som do vento e dos pássaros, criando uma paisagem sonora fascinante para a narrativa.

Deborah Kerr merece uma boa parte dos créditos pelo sucesso da obra. A atriz retrata a Srta. Giddens como alguém que realmente nutre carinho genuíno pelas crianças, ao mesmo tempo em que mostra ingenuidade e mesmo insegurança em seu trabalho como guardiã dos irmãos. A transição dessa figura mais doce do começo do filme para a mulher mais firme e paranoica que chega ao final é feita de forma muito natural. Kerr transmite a instabilidade cada vez maior da governanta; mas ao mesmo tempo a convicção que a atriz concede para a personagem não nos permite duvidar completamente dela. O elenco infantil também é ótimo. Pamela Franklin concede a Flora uma graciosidade e uma pureza encantadoras, ao mesmo tempo em que dá à menina uma aura sinistra, mas que não parece deliberada, como geralmente ocorre com personagens do tipo. Já Martin Stephens dá a Miles uma maturidade desconcertante, ao mesmo tempo em que articula tal maturidade com uma aura inocente que nos deixa pensando que talvez não haja algo inerentemente malicioso nas ações do menino.

Os Inocentes continua sendo um filme incrivelmente atmosférico, com subtextos muito interessantes sobre repressão e o fim da inocência. O visual gótico e quase onírico da obra, somado a personagens cativantes vividos por um elenco afiado garantem a imersão em uma história onde a insanidade e o sobrenatural se confundem. Talvez possa se dizer que o filme não consiga atingir a completa ambiguidade pretendida pelo projeto, pois ainda que não se possa afirmar exatamente o que ocorreu de verdade em Bly, a opinião dos realizadores sobre os eventos narrados parece clara. Mas isso é apenas um pequeno pecadilho em uma bela obra de terror gótico; tão trágica quanto complexa.

Os Inocentes (The Innocents)- Reino Unido, 1961
Direção: Jack Clayton
Roteiro: William Archibald, Truman Capote (baseado em noveleta de Henry James)
Elenco: Deborah Kerr, Martin Stephens, Pamela Franklin, Peter Wyngarde, Megs Jenkins, Michael Redgrave, Clytie Jessop, Isla Cameron
Duração: 110 min.

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