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Crítica | Os Piratas do Rock

por Leonardo Campos
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As rádios piratas são para os meios de comunicação algo semelhante ao que os hackers são para o terreno da cibercultura, salvas, obviamente, as devidas proporções. Tratadas como clandestinas, as rádios piratas são “instituições” que funcionam sem autorização dos órgãos competentes, geralmente o Ministério das Comunicações, como o caso do Brasil. É um conceito, inclusive, que nasceu na Inglaterra, espaço geográfico da narrativa em questão. Eram rádios que buscam burlar as leis, tendo em vista questionar a centralização do poder pela BBC.

A rádio Caroline, por exemplo, é considerada uma das mais antigas da Europa. Roanan O’Rahilly, com postura visionária, saiu de Dublin e partiu para ganhar forças como emissor de rádio. Comprou um navio holandês antigo e seguiu seu rumo. Ao disputar forças com grupos políticos e religiosos, detentores dos meios, os chamados “grupos hegemônicos”, tal personagem irlandês da vida real fez os mares do norte sacudirem com as suas ondas radiofônicas clandestinas. Os modelos logo se espalharam pela França e Itália, nações que as utilizaram de maneira mais focada no radiojornalismo e na política.

Como apontado nos textos de Fale Comigo, Bom Dia, Vietnã, Talk Rádio – Verdades Que Matam, dentre outros, Os Piratas do Rock foi dirigido por Richard Curtis, cineasta que teve o seu próprio roteiro como guia para a construção dramática, o sucesso de um programa de rádio está em grande parte diante dos locutores/apresentadores. Nesta produção, além de boa música, os personagens que gravitam em torno deste universo de crítica política são plurais, representam a diversidade cultural que ganhou novos delineamentos na década de 1960 em todo o planeta, além de se fixar como vozes magnéticas no imaginário de seus ouvintes.

No tal barco onde a rádio pirata encontra-se instalada, temos o Conde (Philip Seymour Hoffman), Quentin (Bill Nighy), Dave (Nick Frost), Gavin (Rhyns Ifans), Thick (Tom Brooke), Felicity (January Jones), Harold (Ike Hamilton) e Carl (Tom Sturridge), filho da divertida e liberal Charlotte (Emma Thompson). Ao vê-los em conjunto, temos a visão em súmula do que podemos chamar de “cinema de Richard Curtis”, isto é, filmes sobre amor, perdas, encontros e desencontros, vinculados aos bons diálogos e atuações, além de boa condução musical, desta vez, comandada por Hans Zimmer.

O que eles querem é viver os ideias de suas revoluções, sem necessariamente seguir as regras estabelecidas por legislações que em alguns momentos agem de maneira arbitrária. Diariamente, os “piratas do rock” transmitem a sua programação via rádio não autorizada, tendo como percalço a perseguição do representante da “maldade”, único detalhe da produção que adentra na caricatura absoluta, mas não chega a atrapalhar o filme de maneira geral: Sr. Alistair Dormandy (Kenneth Branagh), uma mixagem de Hitler com qualquer vilão de filme de super-herói.

Incomodado com o sucesso dos “proibidos” da rádio pirata em pleno mar, o personagem vê a sua autoridade questionada ao passo que a população demonstra interesse pelo trabalho considerado subversivo, inadequado, etc. Numa época onde o rádio era o principal meio difusor de música, os membros que iam de encontro ao sistema tomaram para si o descontentamento com a exclusividade da música erudita, em detrimento da veiculação de cultura pop, a ordem da vez nos anos 1960. Enquanto o poder estatal avança numa cruzada contra a rádio, eles se tornam cada vez mais populares.

Lançada em 2009, a produção narra a trajetória de um grupo que representa as revoluções organizadas pelas rádios clandestinas britânicas na década de 1960, uma era de massificação da TV e do cinema como produto já estabelecido, meios de transmissão de cultura que eram magnéticos e ofertavam novidades, mas não foram capazes de sublimar o rádio que conseguiu encontrar-se com a cultura da convergência até mesmo na era da cibercultura. É um grupo que busca ser devidamente representado na sociedade em que atuam. Resistentes, podem também ser uma alegoria do rádio enquanto transmissão de informação numa época tomada pelas imagens da cultura audiovisual.

É nesta aventura que os habitantes deste terreno sem logradouro específico avançam em críticas sociais ao sistema. A cena do naufrágio é de grande dimensão metafórica, alegoricamente rica. Com o desfecho o fechamento da rádio pelas forças estatais, os rebeldes são resgatados em pleno mar, numa demonstração da popularidade do rádio e de seus “artistas”. Esta postura de salva-vidas é uma belíssima lição de democracia e unificação popular em prol de um bem comum para todos.

A alegoria é um dos melhores momentos do filme, inesquecível. Fala de desprendimento, memória. A cena em que um personagem deixa de lado todos os seus vinis é demasiadamente forte para quem compreende o processo de pertencimento de alguém que enxerga na arte um caminho para a sua sobrevivência.  Ao passo que os discos afundam, adensam também os ideais, a memória musical, o desejo de uma determinada cultura em se fazer relevante, inclusive da rádio com veiculação de música pop, momentaneamente silenciado neste trecho da história.

Com design de produção assinado por Mark Tildesley, o filme possui excelente reconstrução de seu contexto histórico relativamente recente, mas repleto de peculiaridades. A cenografia de Dominic Capon constrói os espaços para os adereços da direção de arte de Thomas Brown, complementados com os figurinos de Joanna Johnston, fundamentais para ilustrar as condições físicas, psicológicas e sociais de cada personagem. A direção de fotografia, comandada por Danny Cohen, capta os diálogos, ações, espaços abertos e fechados, dando ao filme riqueza de detalhes para que nosso mergulho nesse mundo de sexo, música e rebeldia.

Ao longo de seus 130 minutos, a produção versa sobre liberdade de expressão, música pop, coerção política e apresenta o rádio como um meio capaz de criar “comunidades imaginadas”. Salvos pelos ouvintes, parte desta comunidade de ricos, pobres, brancos, negros, heterossexuais e homossexuais, loiras e morenas, gordos e magros, altos e baixos, os “piratas do rock” nos mostram que as suas ações podem ser aproximadas da teoria de Benedict Anderson sobre a formação dos Estados Nacionais. Horizontalizados, os membros desta comunidade sentem-se pertencentes aos ideias promovidos pela rádio que encontra seu fim físico, mas deixa um legado provavelmente inesquecível para os que viveram e puderam contar esta história.

Os Piratas do Rock — (The Boat That Rocked) Reino Unido, 2009.
Direção: Richard Curtis
Roteiro: Richard Curtis
Elenco: Bill Nighy, Emma Thompson, Gemma Arterton, January Jones, Kenneth Branagh, Nick Frost, Philip Seymour Hoffman
Duração: 135 min.

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