Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Othello / Otelo, o Mouro de Veneza (1952)

Crítica | Othello / Otelo, o Mouro de Veneza (1952)

por Luiz Santiago
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estrelas 4,5

As grandes tragédias de Shakespeare possuem um extenso número de temas e subtemas. Dos comportamentos mais mundanos às grandes reflexões filosóficas ou explosões de ira e loucura de suas personagens, o poeta e dramaturgo observou, ironizou e criticou os costumes de sua época, fazendo de cada nova história, mesmo que através de temas recorrentes, uma forma marcante de enxergar o mundo.

Dentre os melhores exemplares de tragédias do bardo temos Otelo, o Mouro de Veneza, peça escrita por volta de 1603. Trançando temas densos como o racismo, o ciúme e “a loucura causada pelo amor”, o autor compôs um cenário que conseguisse abarcar a maldade humana, a traição, a falsa amizade, a insegurança e a decadência de um homem em um espaço de tempo relativamente curto. De suas tragédias, Otelo talvez seja aquela em que o veneno surte efeito mais rápido no protagonista, fazendo-o definhar muito mais tempo antes de cair em desgraça.

Casando-se com Desdêmona sem autorização da família dela e conseguido com garra uma posição de destaque em Veneza, o mouro Otelo recebe uma complexa construção psicológica e social de Shakespeare. Mesmo sendo um mouro – motivo de sobra para ser odiado e rejeitado – sua posição de comandante é de grande influência na cidade e, já no início da peça, revela-se de muita valia para o Duque de Veneza.

Mas se Otelo mantinha-se em alta conta nos mais famosos círculos políticos, o mesmo não podemos dizer de seu círculo de amizades. Iago, o abominável alferes do mouro, é o verdadeiro ícone dessa má influência fraterna e aquele que dará início às desgraças de Otelo, que se deixou levar, cego, para o abismo da suspeita infundada, tendo como certa a amizade com Iago e incerto o amor que lhe devotada Desdêmona.

A adaptação de Orson Welles para Otelo, feita em 1952, traça de maneira muito inteligente os principais pontos da peça e não se estende muito na cadência dos eventos, conseguindo, através da direção notável de Welles e da excelente montagem, um resultado fiel e satisfatório em apenas 1h35min. de filme.

Saindo-se melhor na direção do que na atuação (embora faça um Otelo notável), Orson Welles usou da experiência adquirida em Macbeth, que dirigira quatro anos antes, para realizar um filme enxuto mas que não negasse nenhuma passagem essencial da tragédia de Shakespeare.

A ideia de ciclo que o diretor aplica ao filme fica clara para o espectador logo depois dos créditos de abertura, quando percebemos que a primeira sequência, do funeral, mostrava-nos fatos vindouros. Em seguida, temos uma inteligente relação entre os diálogos e as cenas mostradas. A economia de takes e a originalidade na junção de texto com a imagem tornam os primeiros minutos da obra um pequeno turbilhão de maravilhosos eventos. Iago já aparece como um infame “amigo”, Otelo e Desdêmona se casam, o pai de Desdêmona vai ao Senado acusar Otelo de ter conquistado a jovem Desdêmona através de bruxarias, e a sorte muda para o mouro, quando é chamado para lidar com uma questão de grande importância para o Duque.

Desse ponto, passamos para o segundo espaço geográfico do filme, a ilha de Chipre, onde a tragédia terá corpo. Welles não se permite o luxo de contextualizar o espectador no lugar através de panorâmicas demonstrativas, mas as cenas através de todo o espaço deixa muito claro onde a ação se passa e dá uma satisfatória visão da região do castelo e de suas dependências. Também destacam-se aqui alguns costumes culturais e sociais da época; as festas, a relação dos soldados com sua profissão, a posição dos pobres e dos homens de negócios numa sociedade bélica.

Esse bloco de acontecimentos no Chipre ampliam a rápida apresentação em Veneza, mostrando melhor a interação de Otelo – que Welles opta por interpretar com uma frieza milimétrica, o que ajuda a localizar melhor as suas ações na reta final da tragédia – com as pessoas à sua volta e seguindo firme em uma linha crescente de ações de bastidores, protagonizada por Iago, que molda o futuro de Otelo rumo a uma fatalidade.

Os ambientes se tornam grandiosos e a câmera diminui as tomadas em externas. Otelo se interioriza mais. À sua frieza é adicionada uma postura irascível que o fará receber nome de louco antes que se suicide, após matar Desdêmona. A mão cuidadosa de Welles na direção torna os pontos dramáticos perfeitamente interligados, tornando orgânicas as ações que no original se estendem um pouco mais ou estão postas de maneira mais intricada. Através de uma linha vanguardista de filmagem – e sem exageros – o diretor conseguiu trabalhar através de todos os atos sem nenhum sacrifício, não perdendo nenhuma linha narrativa e não deixando de aprofundar psicologicamente todas as principais personagens.

Fruto de um trabalho bastante cuidadoso da direção de arte, do elenco e e do roteiro (que teve Welles e Jean Sacha como decupadores), Otelo (1952) é uma das mais inteligentes versões cinematográficas para a peça homônima de Shakespeare. Um filme onde só vemos na tela o que é essencial e que consegue, através de uma linguagem estética nada comum e ao mesmo tempo bastante atrativa, mostrar a jornada de um homem que acreditou demais em suas amizades (sem questioná-las um único momento) e se esqueceu de, acima de tudo, acreditar em si mesmo.

Othello / Otelo, o Mouro de Veneza (The Tragedy of Othello: The Moor of Venice) – EUA / Itália / Marrocos / França, 1952
Direção: Orson Welles
Roteiro: William Shakespeare
Elenco: Orson Welles, Micheál MacLiammóir, Robert Coote, Suzanne Cloutier, Hilton Edwards, Nicholas Bruce, Michael Laurence, Fay Compton, Doris Dowling
Duração: 90 min.

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