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Crítica | Otto Lara Resende ou Bonitinha, Mas Ordinária, de Nelson Rodrigues

Um complexo estudo das relações humanas neste marco da dramaturgia do século XX.

por Leonardo Campos
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Segundo depoimentos do dramaturgo Nelson Rodrigues, grandes personalidades da história já haviam ganhado título de peças teatrais, de Júlio Cesar ao icônico Napoleão Bonaparte. Assim, quando foi a sua vez, o autor decidiu empregar o nome de Otto Lara Resende junto ao título de Bonitinha, Mas Ordinária, uma de suas melhores escritas teatrais, um marco da dramaturgia brasileira do século XX. Resende, conhecido por seus bordões famosos, tinha criado um que se tornou parte integrante dos momentos mais humorados, um paradoxo, quando pensamos no desenvolvimento trágico da peça: “o mineiro só é solidário no câncer”. É essa frase de efeito que acompanhará diversos momentos de um dos personagens desta composição formidável em três atos e 27 cenas, adaptada equivocadamente para o cinema em todas as suas versões.

Com variedade de descrições de cenários e tom crítico aguçado e peculiar, como tudo que Nelson Rodrigues fez, a peça traz personagens delirantes, inseridos em situações complexas, um estudo das relações humanas, realizado por este autor conhecido por inaugurar e consolidar o modernismo no teatro brasileiro. Sempre irônico, com desenvolvimento de uma atmosfera sombria, mas permeada por momentos de humor genuíno, Bonitinha, Mas Ordinária traz em seu mote central a história de Maria Cecília, jovem que sofreu um estupro coletivo durante uma situação inusitada, realizado por um grupo de homens negros, demonizados por aqui, um tema polêmico que não tira a qualidade da peça, mas traz reflexões profundas sobre racismo.

A garota, filha de Heitor Werneck, violada e com sua honra manchada, precisa casar urgentemente, arranjo da elite para situações do tipo, numa crítica certeira de Nelson Rodrigues aos costumes de uma sociedade de aparências. Assim, o seu pai pede ao genro Peixoto, marido da irmã de Maria Cecília, para arrumar um marido para a jovem, alguém da empresa que ele é dono, talvez, tendo uma grana alta como pagamento para a missão. É quando conhecemos Edgar, homem dedicado ao trabalho, com 11 anos de firma, convidado agora para fazer parte deste esquema focado em colocar panos quentes na situação que, para a família, é uma vergonha das grandes, perda da visibilidade supostamente aurática do clã.

A grande questão é que Werneck é um hipócrita, pois promove orgias e, numa delas, outras jovens também são estupradas. O seu genro dorme com a garota violada e o estupro, pelo que descobriremos, parece ter sido uma situação calculada pela ninfeta, numa de suas fantasias audaciosas que custa caríssimo para muitos dos personagens em seu desfecho. Aqui, Nelson Rodrigues insere fortemente o tom naturalista que dominou determinados momentos da literatura mundial no século XIX, no Brasil, representada por autores como Aluísio de Azevedo. Apaixonado por Ritinha, uma doce professora que precisa se prostituir para resolver uma dívida contraída por sua mãe no ambiente de trabalho, Edgar vivencia momentos de puro tormento.

Nós, leitores e, na posição de espectadores das montagens e adaptações, acompanhamos com assombro a destreza de Nelson Rodrigues no tratamento de temáticas tão polêmicas ainda na contemporaneidade. Imagina na época em que foi lançada? Numa mixagem de tragédia, comédia e poesia, o dramaturgo estrutura a sua peça com flashbacks eficientes, bastante estranhamento na composição dos personagens e seus comportamentos duvidosos, numa história que reflete as condições de um homem dentro de um meio apodrecido, mas com possibilidades de redenção, algo geralmente alcançado em composições trágicas com o advento da morte. Numa jornada onde não sabemos quem de fato é bonitinho e quem é verdadeiramente ordinário, a peça encerra com o esfacelamento da família Werneck, mas com tom mais esperançoso para Edgar.

Em linhas gerais, um clássico de nossa dramaturgia. Incisivo, certeiro e eficiente.

Bonitinha, Mas Ordinária— Brasil, 1962
Autor: Nelson Rodrigues
Editora: Editora Nova Fronteira
Páginas: 137

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