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Crítica | Pachinko – 1ª Temporada

O sabor da identidade.

por Ritter Fan
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Pachinko, adaptação majestosa e ambiciosa do romance homônimo da jornalista e escritora coreana-americana Min Jin Lee, tem boas doses de melodrama, por vezes resvalando no novelesco e tende a intercalar diversos momentos temporais para contar sua história, duas características de que eu costumo desgostar, mas que, na obra capitaneada por Soo Hugh, funcionam plenamente ao seu favor, criando urgência, tensão, emoção e fluidez a esse épico sobre gerações de uma mesma família coreana fictícia tendo como pano de fundo a dolorosa história real da anexação da Coréia pelo Japão entre 1910 e 1945 e suas consequências sentidas até os dias de hoje. É uma narrativa ao mesmo tempo feia e linda, íntima e abrangente, isolada e universal capaz de hipnotizar o espectador do começo ao fim.

Apesar de contar com um elenco grande, a pedra angular da temporada é Kim Sunja, personagem vivida por três fenomenais atrizes: em sua versão criança, pela encantadora Yu-na; em sua versão adolescente/jovem adulta, pela forte Kim Min-ha; e, finalmente, em sua versão idosa, pela enternecedora (e oscarizada) Youn Yuh-jung. O acerto na escalação tripla é fundamental para a série funcionar como funciona, pois Sunja atravessa todas as quatro gerações mostradas ao longo dos oito episódios e, cada versão de seu jeito, ajuda a enterrar as raízes da série no espectador, com a função dupla de personagem e guia. Apenas em linhas gerais, o arco narrativo principal começa em 1915, entre a ilha de Yeongdo e Busan, no Coréia continental, com a narrativa em off sobre o casamento arranjado dos paupérrimos pais de Sunja e seu mais do que desejado nascimento, seguindo por seu crescimento, enfrentamento de tragédias, mudança para Osaka, até seu amadurecimento e salto temporal para 1989, em Tóquio, quando vemos seu neto Solomon (Jin Ha) retornando ao Japão dos EUA com a missão de adquirir o último imóvel que falta – de uma idosa coreana que se recusa terminantemente a vender – para que um conglomerado hoteleiro possa ser construído.

No entanto, não levem minha descrição simplista a ferro e a fogo, pois ela glosa – propositalmente – todos os fascinantes e excruciantes detalhes dessa imensa jornada de Sunja de seu nascimento até a terceira idade e que envolve um significativo número de pessoas gravitando ao seu redor que são importantes para sua vida. Mesmo considerando a escolha de se estruturar a série não-linearmente, o que exige letreiros constantes sobre “tempo e espaço” para o espectador desatento não se perder, letreiros esses que ficam mais tempo em tela do que o normal, pois eles são trilíngues, em inglês, japonês e coreano para respeitar as línguas faladas na série – especialmente coreano e japonês, pois o inglês é bem subsidiário, só realmente quando tem lógica ele ser usado – o que traz enorme autenticidade ao trabalho de Soo Hugh, o bojo da história reside em Sunja adolescente/jovem adulta, o que extrai de Kim Min-ha uma performance magnífica, que consegue superar a da veterana Youn Yuh-jung em razão da maior latitude de sentimentos que vemos nesses anos vida da personagem.

Mas o drama familiar, que inclui desonra, ambição, mortes, aprisionamentos, desaparecimentos, doenças e tudo mais que podemos imaginar quando falamos de uma obra que caminha por estradas novelescas, digamos assim, é o tempero que extrai o sabor do real alimento da série, que é sua abordagem da “japanização” da Coreia e dos coreanos ao longo dos 35 anos de dominação maciça do império de Hirohito sobre a nação vizinha, algo que, porém, já vinha de muito tempo antes em um complicado e assustador entrelaçamento histórico. A subjugação completa da Coreia já ganha representação quando vemos a pequena Sunja, acompanhada de seu pai, no mercado de Busan, no momento em que policiais japoneses chegam para uma inspeção de rotina, com o silêncio absoluto imperando e todos os coreanos de cabeça baixa, jamais sequer pensando em olhar nos olhos da autoridade repressora. Ao mesmo tempo em que essa imagem simboliza basicamente tudo o que precisamos saber sobre a situação entre as duas nações, a direção de Kogonada usa a sequência para também caracterizar Sunja à perfeição, já que a menina não baixa os olhos.

A série é, portanto, mais, bem mais do que um épico sobre uma família deslocada de seu país de origem. Trata-se de uma belíssima ode à identidade nacional, ao sentimento de pertencimento, uma jornada de autodescoberta, retorno às raízes e uma homenagem à história, ao passado de uma nação e das pessoas daquela nação que jamais, por pior que seja, deve ser esquecido, pois esquecer o passado é arriscar repetir seus erros. E, com isso, Pachinko – esse nome se refere às máquinas bem japonesas que parecem a fusão de caça-níquel com fliperama vertical que movimenta mais dinheiro que os cassinos de Las Vegas, Macau e Cingapura juntos – revela suas mais do que universais temáticas de preconceito profundo, tanto o racial quanto o de gênero, exclusão, exploração, “outrificação” e da subjugação do homem pelo homem que acaba normalizando e normatizando situações terríveis que, por diversas vezes, os oprimidos sequer conseguem perceber a dimensão do tipo de ambiente em que vivem e o preço que pagam por apenas respirar o mesmo ar dos opressores, tendo que se deixar assimilar e, no processo perder sua história.

Os roteiros, para além do melodrama, acabam recorrendo, também, ao uso de tropos e clichês cinematográficos clássicos para universalizar a história ainda mais. Não gosto das construções de mistérios sobre o paradeiro da paixão adolescente de Solomon e de Noa, o meio-irmão de Baek Mozasu (Soji Arai), filho de Sunja que é dono de uma loja de pachinko, pois fica aquela impressão de algo artificial que só existe para amplificar o drama de um lado e transportar pontas soltas para a futura temporada (já em produção, vale dizer). Sei que faz parte de algo pensado para durar mais do que uma temporada, mas creio que a série perdeu um pouco de sua cadência ao trabalhar esses temais diretamente logo nesse começo.

Por outro lado, a reconstrução de época – ou de épocas – é um deslumbramento visual, com cenários que convencem por sua autenticidade e tamanho, por vezes amplificado pelo uso benigno e cirúrgico de computação gráfica. Os figurinos tradicionais tanto coreanos quanto japoneses, assim como os trajes ocidentalizados, bem como o uso da comida para despertar memórias e o próprio conceito de identidade – esse artifício, aliás, é usado por várias vezes e sempre tão bem que chega a emocionar todas as vezes – são um triunfo do cuidadoso trabalho da equipe de pesquisa e design de produção, o que só trazem mais imponência e autenticidade para a série.

Pachinko até poderia ser maldosamente classificada como uma novela que salta no tempo enlouquecidamente, mas ela é também muito mais do que isso. Entre doses generosas de drama familiar, temos inesquecíveis lições de história de um canto do mundo que não é corriqueiro o ocidente se lembrar que existe, atuações belíssimas, cuidadosas reconstruções de época, e muita dor, mas nunca aquela dor gratuita, mas sim a que ressona universalmente em todos nós.

P.s.: O cuidado com a autenticidade da série é tanta que há destaque, nos letreiros iniciais, para o fato de ela ser falada eminentemente em coreano e japonês, com legendas em outras línguas sendo oferecidas, claro. Isso não só já imediatamente torna um crime assistir a essa série em qualquer outra língua, como assistir dublado sem legendas retira a oportunidade de o espectador notar que cada língua tem uma cor – amarelo para o coreano, azul para o japonês e branco para o inglês – de forma que seja possível perceber a sutil e perniciosa maneira como a obliteração da cultura coreana pelo Japão afetou até o modo de falar dos coreanos.

Pachinko – 1ª Temporada (EUA/Coréia do Sul/Canadá, de 25 de março a 29 de abril de 2022)
Criação: Soo Hugh (baseado em romance de Min Jin Lee)
Direção: Kogonada, Justin Chon
Roteiro: Soo Hugh, Matthew J. McCue, Hansol Jung, E. J. Koh, Franklin Jin Rho, Lauren Yee, Ethan Kuperberg, Mfoniso Udofia
Elenco: Youn Yuh-jung, Kim Min-ha, Yu-na, Soji Arai, Carter Jeong, Koren Lee, Jin Ha, Yoon Kyung-ho, Han Jun-woo, Jeong In-ji, Jung Eun-chae, Felice Choi, Lee Min-ho, Kaho Minami, Steve Sanghyun Noh, Anna Sawai, Jimmi Simpson, Louis Ozawa, Lee Dae-ho
Duração: 439 min. (oito episódios)

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