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Crítica | Pacto de Sangue (1944)

por Ritter Fan
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Nascido no seio de uma família judaico-polonesa no ainda Império Austro-Húngaro, o jovem Samuel “Billy” Wilder começou sua carreira no cinema em 1929, em Berlim, escrevendo roteiros e tratamentos para mais de duas dezenas de produções da República de Weimar, até que o Partido Nazista tomasse o poder, quando então partiu para a França e estreou já muito bem na cadeira de diretor (em regime de co-direção), em 1934, com  Semente do Mal, que ele também co-escreveu. Com as turbulências políticas na Europa, só para usar um eufemismo, Wilder só retornaria a essa posição já nos EUA, em 1942, com A Incrível Suzana (sua primeira direção solo), seguido de Cinco Covas no Egito, no ano seguinte.

E, sem dar-se o luxo de tempo para respirar, eis que 1944 marca sua carreira para sempre com o que muitos – inclusive este crítico – reputam como sua primeira obra-prima, Pacto de Sangue que, apesar de não ser tecnicamente o primeiro filme noir, é, talvez, aquele que primeiro encapsula à perfeição todas as características deste estilo. Baseado em romance de James M. Cain que, por sua vez, foi surpreendentemente baseado em um caso real quase idêntico, o roteiro que Wilder co-escreveu com o romancista Raymond Chandler é o filme noir prototípico com a história sendo narrada por seu protagonista, que novamente veste um sobretudo, em um longo flashback enquadrado e interrompido por sequências no presente (algo que Wilder usaria de maneira ainda mais inesquecível em Crepúsculo dos Deuses), com uma clássica femme fatale tão linda quanto maquiavélica e até mesmo um investigador que começa perceber que o crime perfeito em tese perpetrado não é tão perfeito assim.

Com fotografia em preto e branco de John F. Seitz em seu segundo trabalho seguido com Wilder, as luzes e as sombras falam compulsivamente. Se a luz inclemente na primeira aparição da loiríssima Barbara Stanwyck como Phyllis Dietrichson não nos deixa desviar os olhos do fato de ela estar enrolada apenas com uma toalha de banho e evidencia sua falsidade por meio dos reflexos saturados em um penteado perfeito demais para ser real, truque sensacional do cineasta, diga-se de passagem, a luz filtrada por venezianas – efeito que Seitz não criou, mas aperfeiçoou a ponto de se tornar uma ciência – metaforicamente prende o protagonista e narrador Walter Neff (Fred MacMurray) atrás de grades que não consegue se livrar, transformando Stanwyck na aranha que faz dele sua presa fácil em um plano que envolve o assassinato de seu marido depois que uma apólice de seguro de vida, com cláusula de indenização dupla em caso de mortes de formas improváveis (daí o título em inglês), é forjada por Neff, vendedor até então de reputação ilibada nos negócios.

Essa costura visual vem com um ônus que eu até poderia reputar como defeito, mas simplesmente não consigo pela forma fluida e cadenciada que Wilder conduz sua obra, ou seja, as explicações em tese excessivas. No entanto, grande parte delas vêm da boca do grande – ainda que de baixa estatura – Edward G. Robinson como Barton Keyes, investigador da seguradora onde Neff trabalha que começa a perceber as rachaduras no que ocorre. Keyes, apesar de seu cargo, só é visto no escritório (e uma vez no apartamento de Neff), jamais verdadeiramente investigando da maneira clássica, servindo muito mais de interlocutor de Neff com suas deduções sobre o crime que Wilder faz questão de nos mostrar em detalhes. Talvez o cineasta tivesse a certeza absoluta de que Robinson conseguiria lidar com seus textos expositivos sem parecer artificial, sem dar a impressão que ele está explicando algo ao espectador e, se for isso, o diretor estava certo. O ator, então talvez no auge de sua prolífica carreira, cresce magnificamente em tela com suas deduções sherlockianas e acaba revelando-se não como um “mero” coadjuvante, mas sim como o verdadeiro co-protagonista da fita, gentilmente rebaixando Stanwyck em um degrau, mesmo considerando seu marcante papel. Isso fica ainda mais evidente pela forma como Wilder encerra sua fita – era para ser bem diferente, inclusive com uma cadeira elétrica em cena, mas o ditatorial Código de Produção não deixou – conectando Neff e Keyes de maneira muito mais relevante e dramática do que Neff e Phyllis Dietrichson, em um belo exemplo de como problemas externos acabam levando a soluções engenhosas.

A trilha sonora composta pelo húngaro Miklós Rózsa (que, como Wilder, nasceu no mesmo Império) é outro elemento que merece destaque pela forma como serve de tapeçaria sonora para o filme noir por excelência, não somente para Pacto de Sangue. Sua tendência para a criação de peças épicas, com excelente uso dos metais, ganha contornos mais íntimos aqui, mas sem perder a grandiosidade e sem que ele deixe de marcar as sequências de suspense com uma pegada que por vezes faz o longa nos lembrar de obras típicas de Hitchcock, especialmente, talvez, Pacto Sinistro (mas eu posso estar sendo influência pela coincidência do título em português e pela co-roteirização de Chandler, não sei…). Não chegaria a dizer, porém, que Pacto de Sangue é uma obra de suspense, pois quando vemos Neff logo no início da projeção, temos pelo menos uma ideia geral sobre o ocorrido e isso impede que o mistério prospere, mas, uma vez cometido o crime, é absolutamente fascinante ver a forma como a história do vendedor de seguros perdidamente envolvido com a femme fatale passa a ser invadida de cinismo e de outras interpretações sobre a personagem de Stanwyck, muito cortesia do implacável investigador que, quando fareja algo, não desiste nunca.

Pacto de Sangue não é o melhor filme de Wilder – essa honra, na minha lista, fica com Crepúsculo dos Deuses -, mas o diretor mostra o domínio absoluto de seu ofício em uma obra que é composta unicamente de fotogramas repletos de fascínio, técnica e, quase que literalmente, melodia, como um maestro valorizando com gosto cada instrumento e cada músico que tem à sua disposição e hipnotizando o espectador no processo como Phyllis faz com Walter, mas sem qualquer efeito nefasto. Que filme, queridos leitores, que filme!

Pacto de Sangue (Double Indemnity – EUA, 1944)
Direção: Billy Wilder
Roteiro: Billy Wilder, Raymond Chandler (baseado em romance de James M. Cain)
Elenco: Fred MacMurray, Barbara Stanwyck, Edward G. Robinson, Porter Hall, Jean Heather, Tom Powers, Byron Barr, Richard Gaines, Fortunio Bonanova, John Philliber, Raymond Chandler, Bess Flowers, Betty Farrington, Teala Loring, Sam McDaniel, Miriam Nelson, Douglas Spencer
Duração: 107 min.

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