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Crítica | Pantera Negra (Com Spoilers)

por Ritter Fan
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  • Leia, aqui, a crítica sem spoilers.

Pantera Negra, sem dúvida alguma, era um dos filmes mais aguardados do Universo Cinematográfico Marvel desde que sua produção foi anunciada e desde que a primeira aparição em carne e osso (e vibranium) do herói se deu em Capitão América: Guerra Civil, ainda que sua presença, ali, tenha sido de certa forma ofuscada pela talvez ainda mais aguardada ponta do Homem-Aranha. Quando o elenco quase que integralmente composto de atores negros começou a ser anunciado, começou-se a notar que estaríamos diante de um filme focado nas raízes do personagem, evitando aquelas transposições de ação para outros lugares onde T’Challa seria o único personagem africano em meio ao usual mar de caucasianos.

A contratação de Ryan Coogler para dirigir, recém-saído do sucesso que foi Creed: Nascido para Lutar, filme que ressuscitou a franquia Rocky (ótimo, mas nunca vi ninguém reclamar que Creed é basicamente uma refilmagem do primeiro Rocky da maneira como reclamaram – e ainda reclamam – que O Despertar da Força é uma refilmagem de Uma Nova Esperança), foi também uma escolha inspiradíssima da produtora, tão injustamente acusada de ser formular e, portanto, repetitiva (falarei sobre isso mais para a frente). Mesmo com a trilogia (e a série) Blade e Luke Cage no bolso, a Marvel Studios queria algo 100% legítimo, perfeitamente à prova de bala em termos de inclusão e diversidade. E ela conseguiu, ainda que já tenha lido reclamações das mais variadas e todas, claro, descabidas. Mas, como meu colega Anthonio Delbon bem disse em sua crítica sem spoilers, Pantera Negra, ainda bem, consegue subir mais degraus ainda do que ser “apenas” um filme feito para ser inclusivo e diverso, por mais importante que isso seja. Pantera Negra é, além disso tudo, um filme genuinamente bom. Não, nada disso, só bom nada. É excelente. Realmente um dos melhores dos até agora inacreditáveis 18 longas lançados nos 10 primeiros anos do UCM.

E, como há muito o que falar sobre o filme, decidimos, como já tem sido uma tradição aqui no site, trazer uma crítica mais completa e longa, sem as restrições naturais impostas pelo receio de revelar spoilers. Portanto, se já viram o filme ou se não se importam com spoilers, peguem um café, sentem-se confortavelmente e boa leitura! Ah, os quadros azuis de “Implicância”, inéditos aqui no site, são só isso mesmo, “implicâncias” inconsequentes para a formação da avaliação final.

Ancestralidade e Isolamento

Pantera Negra não é exatamente um filme de origem e isso acaba abrindo um bem-vindo espaço para que esse batido recurso cinematográfico em filmes de super-heróis seja substituído pela construção da mitologia de Wakanda e dos Panteras Negras. Ainda que Coogler não resista e insira um preâmbulo contando a origem da nação, que se desenvolveu a partir da queda de um meteoro de vibranium que não só e valioso por si próprio, como alterou a vida na região e levou à reunião de tribos beligerantes debaixo do manto do primeiro Pantera Negra a partir dos efeitos da erva coração, a grande verdade é que ele o faz de maneira elegante e eficiente, sem firulas. Em algo como um ou dois minutos, Coogler consegue estabelecer a importante ancestralidade da cultura de Wakanda e marcar muito fortemente a questão do isolamento do país e seu “disfarce” como uma nação subdesenvolvida.

A mitologia, então, ganha contornos mais atuais, mais ainda assim no passado, no começo da década de 90, com uma ação do rei T’Chaka (com essa idade vivido por Atandwa Kani), em Oakland (cidade natal de Coogler, não é uma coincidência), na Califórnia, cujos desdobramentos – o assassinato de seu irmão por suas mãos e o abandono de seu sobrinho ao “Deus dará” – levará à derrocada momentânea de T’Challa (Chadwick Boseman) pelas mãos de Erik Killmonger (Michael B. Jordan), seu primo, na versão africana dos pecados dos pais voltando para castigar os filhos. A visão que temos então do rei falecido em Guerra Civil, que leva à passagem de manto a seu filho, é desfeita aos poucos e T’Challa aprende sobre o que ele fizera na medida em que nós também aprendemos.

Esse conflito de gerações – presente também no caso de Killmonger, ainda que com bem menos impacto – é, pela falta de uma expressão melhor, a materialização presente da história milenar de Wakanda. Sim, uma nação secreta altamente tecnológica que parece ser o El Dorado, como os olhos cheios de cifrões de Ulysses Klaue (Andy Serkis) afirma, ou, para ficar na metáfora bíblica, o literal paraíso na Terra. Mas o segredo vem com um preço e esse preço pode ser a própria alma, algo com que T’Challa lida literal e figurativamente.

Implicância 1:

Desde que T’Challa apareceu em Guerra Civil e abriu a boca, fiquei me indagando porque raios afinal ele fala inglês com sotaque tão carregado? Uma explicação possível poderia ser a necessidade que a produção talvez tenha tido de sublinhar que ele não é americano ou britânico, mas isso seria subestimar demais a inteligência do leitor (prática comum, aliás). Afinal, tudo que cerca o personagem remete à Wakanda e não há necessidade dessa reiteração. Em termos de história, considerando que ele teve uma das melhores educações do mundo por ser realeza de um país secretamente extremamente rico, seu inglês deveria ser perfeito ou bem próximo disso. A não ser que ele tenha faltado às aulas da língua, claro. Se eu mesmo conheço diversas pessoas – que não são reis, rainhas, príncipes e princesas – que falam inglês sem sotaque e aprenderam aqui no Brasil, não haveria razão para o mesmo não acontecer com T’Challa. Seria a mesma coisa que estabelecer que Magneto deveria ter sotaque alemão ou que a Supergirl falasse com sotaque kriptoniano…

A estrutura narrativa de todo esse começo do filme, do prelúdio até a vitória do novo rei sobre M’Baku (Winston Duke), monarca da única tribo do país que se manteve isolada das restantes, recusando-se a ajoelhar-se perante o Pantera Negra, é, todo ele, irretocável em sua função de impulsionar a narrativa principal e de criar um rico passado à nação fictícia. O roteiro de Coogler, que ele co-escreveu com Joe Robert Cole, co-produtor da primeira temporada de American Crime Story, é perfeito nesses aspectos e não cansa em momento algum. Ao contrário, fica aquela vontade de conhecer mais detalhes sobre o passado da nação, sobre os outros Panteras e especialmente de ver mais da versão jovem de T’Chaka e até mesmo do mencionado – mas nunca mostrado – treinamento de T’Challa para assumir o manto do símbolo de seu país.

Vendo as justificativas para o isolamento de Wakanda do resto do mundo, a primeira questão que me veio à mente foi o grau de egoísmo dessa decisão. Afinal, ainda que fosse efetivamente possível esconder um país com esse grau de desenvolvimento dos olhares vigilantes de outras nações desenvolvidas, como explicar que uma nação assim não teria pelo menos tentado impedir que seus pares à sua volta no continente africano fossem escravizados ou que guerras civis eclodissem diariamente há poucos quilômetros além de suas fronteiras? Como na época da escola, deu vontade de levantar a mão e perguntar a um Coogler imaginário ali perto da telona como ele podia justificar uma escolha obtusa e genocida por negligência dessas? No entanto, quando meu braço estava “coçando” para levantar e interromper essa aula imaginária, eis que o roteiro começa a transformar esse isolamento, essa escolha em um passado distante no ponto nodal macro da narrativa. A entrada de Nakia (Lupita Nyong’o) na história, com o Pantera “resgatando-a” de um comércio moderno de escravos para que ela participe do funeral de T’Chaka e de sua coroação, tem o objetivo indireto de oferecer um passado recente para o monarca, dando-lhe mais dimensões logo de imediato e, diretamente, de oferecer um olhar de fora para dentro, um olhar que julga e condena exatamente a questão do isolamento. Nakia, por ter vivenciado o mundo ao seu redor como a 007 de Wakanda, não consegue mais justificar mentalmente a incomunicabilidade de seu país.

Auto-contenção e legitimação

O isolamento proposital de Wakanda poderia ter sido quebrado imediatamente por um roteiro menos corajoso e mais conveniente. Seria como se vê em tantos quadrinhos e filmes por aí: estabelece-se uma situação qualquer somente para ela ser pervertida completamente alguns minutos depois, como se ela nunca tivesse existido. Coogler e Cole, muito ao contrário, usam exatamente esse isolamento para contar uma história que é substancialmente auto-contida, com começo, meio e fim dentro de seu universo bem particular, apesar de, claro, estar contida em um universo cinematográfico bem mais amplo que ganha suas devidas referências sem que o ritmo da história seja quebrado, outro perigo na medida em que mais e mais filmes entrelaçados são lançados. E esse talvez seja o segundo maior mérito do roteiro que cria um “bolsão” narrativo independente que é, ao mesmo tempo, absolutamente harmônico em relação aos elementos já estabelecidos na mitologia geral do UCM sem se fiar neles ou interromper a narrativa para nos situar em relação a eles.

E essa auto-contenção reforça a tal legitimidade que mencionei nos parágrafos preambulares. A história que vemos diante de nossos olhos é uma história integralmente do Pantera Negra, que nasce a partir do passado de seu país e se desenvolve em relação a ele. Mesmo o “estrangeiro” no filme, o sul-africano bôer sem mão Klaue, está intrinsecamente ligado à mitologia do personagem em razão tanto dos quadrinhos do Pantera quanto o que foi estabelecido em Era de Ultron. E é exatamente Klaue que é utilizado como pontapé inicial para a história, com T’Challa, já completamente legitimado como rei, encabeçando uma missão junto com a eficiente e estoica Okoye (Danai Gurira, como sempre manejando armas brancas como ninguém), líder do Dora Milaje, guarda real de Wakanda e a já citada Nakia em uma ação que parece homenagear em sua integralidade os filmes de James Bond, desde Shuri (Letitia Wright) fazendo as vezes de Q, passando por Nakia como a literal 007 de seu país e Everett K. Ross (Martin Freeman) servindo como o típico liaison da CIA e, claro, toda a sequência de ação em si dentro do cassino e pelas ruas da Coréia do Sul. Não fosse o uniforme de Pantera Negra, teríamos o primeiro James Bond negro, já pensaram?

Apesar de fora de Wakanda, a sequência, em si, não foge do conceito de auto-contenção que Coogler se esmera em obter. Tudo o que acontece – inclusive o breve interlúdio para o roubo de um machado de vibranium em um museu em Londres – tem origem e consequência dentro da narrativa que toca o Pantera e/ou Wakanda diretamente. Klaue é o ponto focal por sua história pregressa no país camuflado e sua captura é uma falha no reinado de T’Chaka, algo que seu filho tenta corrigir, mas não consegue, para profundo desapontamento de seu amigo e líder tribal W’Kabi (Daniel Kaluuya), cuja infantilidade (abordarei esse aspecto mais para a frente) precipita a queda de T’Challa.

Implicância 2:

É perfeitamente possível aceitar que um playboy bilionário com fetiche por fantasias de morcego tenha uma caverna debaixo de sua mansão secreta repleta de equipamentos altamente tecnológicos, mas é um tantinho mais difícil acreditar que uma cidade inteira que poderia muito bem ter sido retirada de um episódio dos Jetsons existir na Terra de hoje em dia sem que alguma anomalia fosse detectada por satélites ou outras tecnologias. Sem dúvida, a ideia, no papel – ou seja, nas HQs – pode até funcionar, pois papel aceita qualquer coisa, como já diria o sábio. Mas, quando há a transposição para o celuloide, tornando a coisa mais próxima da “vida real”, a carga de suspensão da descrença aumenta consideravelmente. E já é a segunda vez que a Marvel nos pede isso, já que, em Inumanos (O horror! O horror!), Attilan fica escondida na lua sob uma “redoma de invisibilidade”…

A fotografia noturna de Rachel Morrison (que trabalhou com Coogler em Fruitvale Station) também procura emular a “atmosfera 007” com muita superfície reflexiva que empresta aquele ar de sofisticação decadente ao cassino e um lustre dinâmico à perseguição cheia de CGI (dos bons) que se segue. É até um certo choque a troca radical de paleta de cores, mas ela faz pleno sentido aqui. Enquanto Wakanda é sempre vista como um diamante sobre a Terra, brilhante, multifacetado e gerando cores por seu prisma evolutivo, a Coréia faz as vezes de “antro de escória e vilania”, mas não como uma crítica ao país, e sim como um espelho para a verdadeira alma formativa do país de T’Challa, algo ainda alheio ao personagem nessa altura. Portanto, o contraste das cores tribais vivas e alegres do país africano cede espaço, momentaneamente, ao sombrio chique e o colorido histriônico do país asiático. O choque é proposital e eficiente.

Mas, como disse, Coogler queria seu filme como uma volta às raízes e é para Wakanda então que voltamos com o misterioso Erik Killmonger começando a ser encaixado de forma razoavelmente orgânica narrativa, ganhando seu passado e chegando no reino para revelar a dura verdade que o próprio T’Challa só descobrira pouco tempo antes depois de enfrentar verbalmente o xamã Zuri (Forest Whitaker no segundo papel seguido para a Disney em que ele faz um veterano que se sacrifica diante de seu protegido…). Incomodou-me a velocidade com que Killmonger clama o trono e, sem maiores delongas, sai para desafiar T’Challa que, em sua arrogância (e também com o peso da culpa pelos atos de seu pai), aceita. Esse momento de correria é o primeiro que efetivamente parece estranho na projeção, com um encadeamento narrativo dependente demais de coincidências e de aceitações de situações completamente fora da curva que, em uma corte normal, deveria passar por detidos exames dos mais velhos, especialmente no que se refere à hereditariedade, legitimidade ao trono, direito de desafiar o rei e assim por diante. O roteiro procura simplificar demais a transição e a derrocada de T’Challa e, com isso, a história perde em riqueza, que é trocada por celeridade meteórica sem que ela seja realmente necessária.

E essa celeridade continua na forma como o embate entre primos se dá. Se compararmos com a luta contra M’Baku no começo, aqui vemos um T’Challa que já entra derrotado. Sem dúvida, ele está abalado pelas descobertas recentes, mas ele é um guerreiro e, acima disso, um rei. Quando Killmonger o derrota com razoável facilidade, tendo sua vida poupada inicialmente pela interferência indevida – e ilegal – de Zuri, a situação fica ainda pior, já que toda a cerimônia e toda a tradição de Wakanda é quase que jogada no lixo. Se o desafio é legítimo, então Killmonger foi o vencedor e mesmo Nakia e a família de T’Challa deveriam ter aceitado o resultado. Era a única postura possível para uma nobreza que pelo menos parece ter o verniz da retidão moral. Aliás, vale ainda um adendo: T’Challa, mais tarde, previsivelmente alega que, como ele não morreu pelas mãos de Killmonger e também não desistiu, o combate não teria acabado. Mas isso não é verdade já que Zuri interrompeu o coup de grâce. Sei que estou achando o proverbial “cabelo em ovo”, mas são os pequenos detalhes que tendem a derrubar a lógica estrutural de um filme.

De forma alguma porém, quero dizer que esse elemento desabona a obra, pois, dentre os problemas que detectei, esse é, digamos, o menor. Além disso, há diversos outros aspectos que já tratei e que também ainda tratarei que compensam e tendem a enturvar os defeitos, como a magnífica beleza que Coogler coloca diante de nossos olhos.

Estética e Fluidez

E falo, aqui, de beleza plástica mesmo.

Pantera Negra pode não ser exatamente o melhor filme do UCM (não é para mim, mas pode ser para você, lógico), mas ele me parece o mais visualmente impressionante. E de longe.

Mesmo considerando o cuidado que Capitão América: O Primeiro Vingador mostrou ao retratar os anos 40 nos EUA e na Europa devastada, mesmo diante da variedade e da hipnotizante paleta de cores dos dois Guardiões da Galáxia e também de Thor: Ragnarok, mesmo até diante dos filmes da Distinta Concorrência, Pantera Negra está em outro nível, como se realmente tivesse seu universo próprio. A começar pelo uniforme/armadura do personagem titular que, apesar de eu sempre preferir o todo preto e de tecido clássico dos quadrinhos (sou old school, admito), é deslumbrante em seus mínimos detalhes, desde a textura que forma desenhos que referenciam os mais coloridos de sua cultura, passando pelos detalhes em prata (ainda bem que T’Challa escolheu o modelo prateado!) e também pela capacidade de absorver e devolver impactos representada pela cor arroxeada, há uma graça e uma harmonia ímpar para a vestimenta de guerra do soberano de Wakanda. E digo isso em relação aos dois uniformes que vemos e também com o mais antigo de T’Chaka que vemos apenas brevemente nos dois momentos de flashback para Oakland.

Mas os figurinos não ficam restritos ao Pantera. Muito ao contrário, eles ganham realmente a variedade representativa oriunda da origem de Wakanda (e dos povos e tribos africanos em geral, pois foi esse o objetivo, logicamente) quando observamos as armaduras vermelhas e douradas da tropa de elite Dora Milaje, as roupas propositalmente diferentes, mas perfeitamente dentro de uma harmonia ampla de Nakia, Shuri e, claro, da elegante Ramonda (Angela Bassett), das roupas cerimoniais de cada tribo que vemos na primeiro combate cerimonial de T’Challa e, depois, as não cerimoniais como parte das tribos que mais vemos, ou seja, as lideradas por M’Baku – reminiscentes de um gorila branco, já que M’Baku, nos quadrinhos, é conhecido como Homem Gorila (nome que foi evitado para minimizar as inevitáveis piadinhas idiotas) e se veste como tal – e W’Kabi, mais pastorais, mais imponentes em seu azul mudo. Até mesmo as cicatrizes de Killmonger criam um fascinante mosaico em seu corpo que estranhamente combinam com a vida e as cores ao seu redor (ou então estou vendo coisas demais, me perdoem…).

Implicância 3:

Mataram Ulysses Klaue!!! Malditos sejam Ryan Coogler e Joe Robert Cole (e também Killmonger)!!! Andy Serkis ainda tinha muito mais o que fazer como o ótimo vilão mequetrefe que só apanha de quem quer que seja.

Queremos Klaue de volta! Revivam-no como fizeram com o Agente Coulson já! E a tempo de ele lutar ao lado de Thanos e sua Ordem Negra!!!

Em suas diferenças, o conjunto de figurinos, de responsabilidade da maga da área Ruth E. Carter, transmite uma impressionante unicidade realista que nos convence de que sim, é perfeitamente possível acreditar que um país altamente tecnológico mantenha, de forma profunda, o respeito por sua ancestralidade. Nada de ternos pasteurizados, portanto, que fica restrito ao momento inicial em que vemos Ross em sua missão na Coréia do Sul.

Mas essa harmonia não seria possível se ela não fosse ecoada no restante do design da produção, trabalho comandado por Hannah Beachler, com a decoração de sets sob responsabilidade de Jay Hart. Muito dependente de CGI, o trabalho, aqui, é de dar credibilidade também à cidade escondida debaixo de um holograma de floresta densa. Se aceitar a existência secreta de um país inteiro é difícil, é muito fácil acreditar nele uma vez que o vemos. A fusão entre mega-cidades (só vemos uma, até onde vai minha memória) e campo, com direito a criações de ovelhas e de rinocerontes(!!!) – aliás, outro figurino excelente é o desses bicharocos em suas armaduras que fariam invejam ao Rino, inimigo clássico do Aranha – é revestida de verossimilhança, mesmo que tenhamos pouco tempo para apreciá-la. Wakanda, com isso, torna-se um fascinante reduto que simplesmente precisa ser mais explorada em inevitavelmente vindouras continuações.

Arriscaria dizer que não há nada fora de lugar em termo visuais. Pantera Negra poderia ser um filme mudo e ainda sim seria capaz de deslumbrar. Mas ainda bem que a imagem vem muito bem acompanhada de um som muito particular.

Trilha e Sonoridade

Encarregado da trilha sonora instrumental de Pantera Negra, Ludwig Göransson (Fruitvale Station, Creed e Corra!) apresenta uma das trilhas sonoras mais redondas e realmente temáticas do UCM. Não pretendo, aqui, fazer uma análise detalhada da trilha, primeiro por minha confessada ignorância sobre o assunto e, segundo, porque a crítica separada ainda será feita por quem realmente entende.

No entanto, o compositor, apesar de não fazer uma trilha que pareça funcionar fora da estrutura do filme, cria algo extremamente funcional e marcante dentro da projeção, com diversos sons tribais marcando o ritmo das sequências de ação, especialmente os dois combates ritualísticos e a batalha final com direito à cavalaria de rinocerontes e M’Baku chegando no proverbial último minuto. E a sincronização de Coogler é particularmente feliz, pois ele, em diversas cenas, consegue adequar e manobrar a sonoridade de forma que ela se mescle com a edição e montagem sonora da obra. Trata-se de um belo exemplo de trilha sonora funcional que amplifica de verdade a força da narrativa sem, porém, interferir nela, chamando mais atenção para si do que deveria.

Mas a arquitetura sonora de Pantera Negra vai além da trilha – que conta, também, com canções de Kendrick Lamar que dão sabor, mas são subaproveitadas na fita – e ecoa a diversidade visual que vimos concretizada nos fascinantes figurinos em seus sons ricos de mitologia e lenda. Coogler, mesmo longe de tentar colocar nas telonas um filme de arte, faz de seu blockbuster uma plataforma diferenciada para trabalhar sons que remontam a tribos – desde percussão diegética até sons guturais de guerra. Por vezes ele até arrisca comicidade involuntária ao colocar M’Baku e sua tribo imitando o som de gorilas, algo que ganha enorme poder na segunda vez em que ouvimos o som, em momento decisivo da batalha final.

No entanto, Pantera Negra não é, definitivamente, um filme “de arte” no sentido pretensioso que muitos atribuem a essa categoria de filmes que eu nem estou muito certo que é mesmo uma categoria. Com isso eu quero dizer que a obra é indisfarçavelmente um filme de super-heróis e, como tal, acaba sujeito a alguns problemas mais salientes.

Armadilhas e Tropeços

Já mencionei a correria do roteiro para inverter o quadro, tirar T’Challa do trono e colocar Killmonger no lugar. Esse acontecimento, mais do que esperado, diria, acaba catalisando uma sequência de ações que faz a aventura descambar para o lugar-comum. Toda a tentativa de criar um fiapo de tensão sobre o fim do monarca – que até os rinocerontes adestrados sabem que não morreu, mesmo caindo de uma cachoeira mais alta que Victoria Falls – soa boba, com Coogler e Cole caindo na armadilha do filme-padrão-de-ação-que-todo-mundo-sabe-cada-detalhe-do-que-vai-acontecer.

Quem acompanha minhas críticas sabe que sou a última pessoa do mundo a exigir imprevisibilidade em roteiros. Muito ao contrário, aquelas surpresas, twists e “oooohs” e “ahhhhhhs” que tantos almejam e outros tantos desdenham com o famoso “eu já sabia” são artifícios narrativos que não me encantam particularmente. Um filme – mesmo arrasa-quarteirões – precisa ser mais do que sua surpresa. Parafraseando Alfred Hitchcock, eu troco 15 segundos de surpresa por 15 minutos de suspense sempre. E eu também tenho plena consciência de que, em filmes de super-heróis, a morte do protagonista é algo impossível e Coogler tinha que lidar com a situação.

E a forma como ele encontrou foi, pela ausência de uma palavra melhor, trivial, pouco inspirada. Falo, aqui, dos minutos entre a “morte” do rei e seu renascimento, com todas as sequências sobre a “malvadeza” de Killmonger no meio. O que vemos, ali, é o diretor sucumbindo a uma fórmula, mas não à fórmula Marvel que muitos detratores do UCM acusam a produtora. É uma fórmula, uma sucessão de clichês, de sequências useiras e vezeiras que mais cansam do que realmente acrescentam alguma coisa.

Sim, T’Challa aprende algo com sua morte. Quando ele está no “plano astral” com seu pai e demais Panteras, ele renega sua herança monolítica e imutável. Ali ele toma a decisão de abrir Wakanda para o mundo, algo que, como mencionei, vinha sendo muito bem trabalhado ao longo da narrativa e que Killmonger catalisa. E, por isso, ele não pode morrer. No entanto, para isso acontecer, tivemos que passar pela cadência do “morre-não-morre”, “M’Baku, meu inimigo mortal, me salvou” e outras baboseiras padrão de filmes assim.

Recheando esse problema, ainda há a quase que instantânea virada de casaca de W’Kabi, que o roteiro estabelece como um admirador de T’Challa e amante (marido?) de Okoye. Ah, mas o roteiro faz isso justamente para surpreender no twist traidor, alguém poderia dizer. Sim, mas eu não acabei de dizer que o twist é o de menos? Que ele precisa ser orgânico à narrativa e não algo improvável apenas? W’Kabi parece uma criança chorona batendo o pé na loja porque seu pai não quis comprar um bala. T’Challa não capturou Ulysses Klaue, apesar de quase morrer tentando praticamente no primeiro dia de reinado e, por isso, W’Kabi faz biquinho e entrega seu amigo de bandeja para Killmonger? Haja paciência, não é mesmo?

E Killmonger, aliás, será ele mais um dos vilões fracos do UCM? Aqui a resposta vai depender. Em termos de motivação, ele está coberto, mesmo que seu objetivo resvale na boa e velha vingança. Mas funciona dentro da estrutura proposta e de forma alguma parece algo jogado em tela.

No entanto, o que retira sua força é um pouco da já mencionada velocidade com que as coisas ocorrem a partir do resgate de Ulysses Klaue das mãos de Ross e T’Challa. Quase que completamente do nada, como se os acontecimentos ali tivessem despertado uma raiva adormecida, Killmonger decide ir até Wakanda para lidar com T’Challa. Ora, T’Chaka já havia morrido e sua morte televisionada pelo mundo todo. Se ele conhece a cultura do país de seu pai como o roteiro dá a entender (ele fala a língua inclusive, devemos lembrar), então ele sabe do ritual e poderia ter feito tudo o que fez antes, de maneira muito mais limpa e direta, sem todas as voltas e sem parecer que ele despertou de um torpor de 30 anos depois do assassinato de seu pai. Sei que, se assim fosse, não haveria filme, mas creio que o problema seria perfeitamente remediável se toda essa raiva incontida do personagem se materialize em um plano de décadas para estar pronto para clamar o trono, algo que desse substância e uma certa preparação para o que transparece como uma decisão entre comer pão com manteiga ou com requeijão.

Com isso, Killmonger acaba ficando lá no meio (ou na metade de cima, para ser bondoso), misturado com seus amigos Ronan e Kaecilius na escala Marvel de vilões, o que, definitivamente, não é algo ruim. Diria até mesmo que ele não precisava morrer e poderia muito bem ser reaproveitado em futuro longa do Pantera.

Fórmula Marvel e Blockbusters

Os problemas de Pantera Negra – que sim, são mitigados pela qualidade geral do filme, não tenham dúvida – tem como origem a malfadada Fórmula Marvel? Vamos investigar rapidamente.

Primeiro, considero injusta a pecha de que a Marvel Studios se usa de uma fórmula própria. Tivemos filme de época, filme de assalto, comédia, filme de espionagem, filme psicodélico, ópera espacial, filmes de origem e, agora, uma aventura clássica sobre honra, hereditariedade e erros do passado com uma bela camada e mensagem políticas. E isso tudo com identidade própria, com se estivéssemos lendo quadrinhos: todos são diferentes, mas todos são também parte de um mesmo universo. E um universo inédito e extremamente complexo no cinema que é ainda recheado por séries de TV e curtas em um emaranhado surpreendentemente positivo.

Então, a Fórmula Marvel é uma lenda bobalhona. O que existe, claro, é uma fórmula e ponto final. Essa tal fórmula – ou forma, chamem do que quiser – é a que permite a criação de blockbusters em cadeia, em uma linha de produção que é variada, mas que se prende ao mesmo tipo de estrutura narrativa de outros universos, como os de Harry Potter, DC Comics e até mesmo – perdoe-me por citar isso aqui – a “Saga” Crepúsculo. E, com isso, não quer escudar nem escusar a Marvel Studios de críticas negativas. Ao contrário até. Cada filme precisa e deve ser analisado por seus méritos próprios e Pantera Negra mais do que merece isso. Chega a ser engraçado como a cada novo filme da produtora, temos os comentários “mais um filme cheio de piadinhas”, “mais  um vilão porcaria” e assim por diante, como se estivéssemos falando de uma amálgama em que não fosse possível separar uma coisa da outra. Se Pantera Negra é mais um de alguma coisa, então o problema talvez esteja na estrutura formular desse tipo de comentário e não da forma de fazer filmes da Marvel.

XXXXXX —— XXXXXX

Pantera Negra é, literalmente, uma beleza de filme. Um filme de super-herói com coração, coragem e consistência, mesmo que peque aqui e ali. Uma mais do que bem-vinda adição ao UCM que mostra que esse universo parece mesmo estar longe de parar de nos surpreender.

P.s: O 3D é completamente desnecessário, mas é bem utilizado nas sequências diurnas, com profundidade de campo apropriada. No entanto, nas sequências escurecidas, notadamente na ação na Coréia do Sul e na pancadaria final entre o Pantera e o “Onça Pintada”, os óculos atrapalham demais e tornam a experiência irritante.

P.s 2: Há duas cenas depois que o filme acaba. Uma logo depois dos nomes individuais passarem ao final, que tem carga política, mas não acrescenta nada que já não tenha sido abordado no filme e uma ao final de tudo, relacionada mais com o UCM, só que sem maiores consequências.

Pantera Negra (Black Panther, EUA, 2018)
Direção:
 Ryan Coogler
Roteiro: Ryan Coogler, Joe Robert Cole
Elenco: Chadwick Boseman, Michael B. Jordan, Lupita Nyong’o, Danai Gurira, Martin Freeman, Daniel Kaluuya, Letitia Wright, Winston Duke, Sterling K. Brown, Angela Bassett, Forest Whitaker, Andy Serkis, Florence Kasumba, John Kani, David S. Lee, Nabiyah Be, Ashton Tyler, Denzel Whitaker, Atandwa Kani
Duração: 134 min.

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