Ouve, ó filho, o que te revelarei o Hino da Primordial dos grandes frutos.
Aquele que o recita constantemente, com devoção, torna-se poderoso como Vishnu.Na Era de Kali, tal pessoa não sofrerá com morte prematura, doenças ou medos.
Mesmo quem não tem filhos obterá um, se ouvir por 45 dias.Se for ouvido da boca de um brâmane por dois meses, liberta-se de prisões.
Se uma mulher que perdeu filhos escuta por seis meses, terá filhos vivos.Na travessia de barco, em perigos, ou na guerra, a recitação concede vitória.
Se escrito e colocado em casa, não há medo de fogo nem de ladrões.No palácio do rei, garante vitória constante. Todos os deuses tornam-se propícios.
As moradas da Deusa em todo o universo
Kali Stotram
As voltas com uma nova trilogia para assistir e analisar me deparei com um tipo muito intrigante e novo (para mim é claro) de cinema, peguei para assistir três obras do austríaco Ulrich Seidl, as quais me provocaram verdadeiramente, mas de uma forma a qual não consegui entender de início, pois estes filmes demoram para serem digeridos por serem provocadores, sarcásticos, e na maioria do tempo, desoladores também. O diretor, que conta com planos geralmente estáticos, explora situações desnorteantes e inegavelmente suscita a mente de quem assiste o seu conterrâneo austríaco Michael Haneke, contudo, além de caminhar por temáticas geralmente mais leves – até certo ponto – Seidl costuma centrar o desejo de suas personagens na busca pelo amor, o que seu compatriota não parece tão interessado, com exceção, é claro, pelo excelente Amour de 2012.
Conhecido por obras corrosivas como Dias de Cão, Importar / Exportar e Amor Animal, em sua Trilogia dos Paraísos a ser abordada nessa série de críticas, somos imersos por questões sociais, políticas e existenciais em um tom decididamente naturalista, mas de uma maneira bem menos pessimista do que um Claudio Assis, por exemplo. Aqui a direção optou por fazer uso das três virtudes divinas que Paulo de Tarso cita em 1º Coríntios 13:13 (Esperança, Fé e Amor) para direcionar as temáticas de suas obras. Aproveitando esse ensejo religioso, no final da crítica, pretendo inserir um pequeno texto sobre alguns simbolismos da deusa Kali, os quais me parecem ressoar bastante com a proposta chave dos filmes dessa trilogia: enxergar beleza através da Morte. Assim sendo, vamos seguir com a análise crítica de Paraísos: Amor.
Primeiramente, creio que o mais importante seja apresentar um pouco mais ao leitor de nossa crítica a natureza artística de Ulrich: em sua direção artística ele tende a abordar o ponto de vista do espectador de uma maneira mais distanciada de seus personagens, fazendo com que nos sintamos verdadeiros voyeurs, passivamente contemplando as situações terrivelmente ordinárias trazidas por ele. Isso é alcançado fazendo pouco uso de close – ups em prol de planos abertos e médios, geralmente parados, contando sempre como uma boa composição de quadros dentro da cinematografia escolhida. Contudo, muitas vezes são usados vários tracking shots acompanhando os personagens da obra em seu tortuoso caminho em busca de alguma forma de amor que dê significado a sua existência, sem nenhum medo de esconder e suprimir as emoções dos protagonistas de suas obras só para fazê-las emergir da forma mais passional possível, posteriormente. Suas tomadas não fazem uso de trilha sonora incidental, com exceção de músicas diegéticas. Assim, seguindo uma forma cinematográfica e narrativa bastante realistas, mas sem apelar em demasia para a crueza e a miséria humana, o diretor, em geral, é uma boa entrada para todos aqueles que desejam imergir dentro do cinema austríaco contemporâneo, com uma nota adicional aqui para sua última obra, Rimini (2022), altamente indicado para aqueles que gostaram de Paraíso: Amor.
I – Neocolonialismo tardio
A trama do filme se inicia com Tereza (Margarethe Tiesel) uma mulher austríaca branca, na faixa dos seus 50 anos, que junto a algumas amigas viaja para o Quênia, país localizado na costa africana leste. Fazendo um perfil de classe média alta e mãe solteira de uma filha adolescente, parece buscar um típico programa de ‘’gringo’’ nessa viagem, com direito a todo tratamento que uma turista deslumbrada pode ter, valendo citar aqui o termo Hakuna Matata, expressão em suaíli (língua falada na África Oriental) que significa “sem problemas” ou “não se preocupe”, mantralizada na obra a todo momento pelos moradores locais, sempre tentado serem os mais solícitos possíveis. É inegável que o tema do neocolonialismo europeu surja a todo momento de forma gritante, principalmente quando a narrativa endossa esse quesito ao nos apresentar sequências inteiras de turismo sexual e objetificação erógena de homens negros.
O que começa com um resort luxuoso e turistas de meia-idade encantadas por toda romantização cultural e exotismo do País africano, logo se transformará em idas recorrentes para a praia onde Tereza, influenciada por uma amiga, descobre a possibilidade de transar com homens quenianos à custa de algum dinheiro. O que parece ser aterrador (e o é) vindo da protagonista, depois se revelará fruto da mais profunda solidão e desconcerto com o próprio corpo e vida. Ela está perdida, desejando um parceiro que a aceite como é, algo mais amplo do que simplesmente a busca pelo prazer de transar por transar, portanto, podemos dizer que o que ela almeja de fato é ser desejada sexual e emocionalmente. Dando seguimento a história, em uma impactante sequência passada na praia, vários homens ficam próximos ao mar para tentar vender colares manufaturados e seduzir turistas, onde Tereza irá conhecer Salama (Carlos Mkutano) com quem, após alguma conversa, ela terá uma primeira tentativa de relação sexual, a qual não dá certo, por ela não saber lidar com a situação, já que da parte dela não havia nenhum sentimento envolvido ali.
Vale ressaltar aqui um aspecto bastante interessante do filme: Paraísos: Amor se fez muito feliz em construir um discurso altamente crítico ao turismo predatório, mas o faz de forma nada panfletária. Somos apresentados ao disparate econômico entre o rico hotel onde Tereza está hospedada para com a cidade queniana aonde grande parte da trama se desenrola, e longe de explorar a pobreza pela pobreza o diretor opta por representar a urbe viva, cheia de gente, permeada de vida, é de bater palmas, pois é fácil explorar a miséria pela miséria, mas ao abordar um mundo cheio de contradições o autor promove uma reflexão válida no público que a priori podia apenas julgar a protagonista como se as questões abordadas aqui fosse apenas de ordem moral, se esquecendo dos aspectos materiais que as envolve.
II – A fetichização de Si e do Outro
Após uma primeira tentativa de transa bastante complicada, Tereza conhece outro rapaz na praia, Munga (Peter Kazungu) quem prontamente lhe faz várias promessas de amor, ficando um tempo maior e mais significativo com ela. Contudo, tudo não passa de uma artimanha para conseguir dinheiro, em vista de ajudar sua verdadeira mulher e filho, além de uma escola infantil local. São nessas sequências que mais imergimos no mundo queniano, onde os contrastes econômicos se tornam cada vez mais salutares, detalhe especial para a sequência do já citado colégio infantil onde as crianças recebem Tereza da forma mais calorosa possível, em busca de dinheiro para manter seu local de estudo. Seriam, assim, as terríveis ações de Munga justificáveis? Claro que não, mas podemos refletir com elas até onde o desespero pode levar um homem, abismo afundo.
Com o decorrer da trama o filme mostra não ter vergonha de usar o nu artístico quando necessário, as cenas de sexo presentes aqui são íntimas e intensas e soam bastante ordinárias, quase cotidianas, não há um exagero cênico ou de mise-en-scène moldado para explorar o corpo dos atores e atrizes. A todo instante a busca por amor e compreensão de Tereza passa a evocar aspectos cada vez menos eróticos e mais emocionais, com destaque para as dolorosas e intermináveis cenas em que a vemos ser enganada repetidas vezes por Munga, sempre em busca de mais e mais dinheiro. Ocasionalmente, ela finalmente se dá conta de que afinal está sendo abusada financeiramente e dá um basta na situação, mas os impactos psicológicos perduram, por exemplo, quando a assistimos, mais a frente, implorar à filha que lhe deseje feliz aniversário, diversas vezes, em uma caixa postal silenciosa. Dessa forma, entendo que o diretor está longe de ver Tereza como simplesmente a errada da situação, o interesse aqui é nos fazer refletir sobre o sofrimento em seus diversos aspectos, social, íntimo e psicológico, talvez buscando alcançar uma prática de Amor que esteja mais próximo da compaixão e solidariedade em detrimento da paixão, nos dando a chance de encarar dois lados de um diferente problema que é fruto de modos de vida destrutivos, econômica e emocionalmente – sim, devo colocar o capitalismo e o imperialismo contemporâneo como algozes e causadores dessa mazelas aqui expostas.
Dessa forma, a transformação do Outro e do Eu em objeto ocorre em uma via de mão dupla durante toda a obra, peguemos de exemplo quando finalmente Tereza consegue comemorar sua data de nascimento – uma surpresa realizada por parte de suas amigas e não de sua filha – sendo que seu presente é um stripper negro, onde há um embate em qual das mulheres ali presente consegue lhe causar uma ereção. Nem preciso falar o quanto toda a situação é constrangedora para todos e que termina sem o objetivo alcançado. Mais uma vez vidas vazias são preenchidas por elementos igualmente vazios.
III – Desespero
Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele próprio nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos dizem duma doença, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, num relâmpago, raramente um medo inexplicável lhe revela a presença interna. E de qualquer maneira jamais alguém viveu e vive, fora da cristandade, sem desespero, nem ninguém na cristandade se não for um verdadeiro cristão; pois que, a menos de o ser integralmente, nele subsiste sempre um grão de desespero.
Søren Kierkegaard
O ápice da tragédia anunciada de nossa protagonista se dará quando essa paga um bar man, Gabriel (Gabriel Mwarua) para poder passar uma noite com ela. Ao levá-lo para seu quarto, o homem, claramente sem jeito, tira a roupa e toma banho a pedido da contratante, mas na hora de realmente pôr em prática os interesses de Tereza, ele não consegue e acaba sendo expulso pela mulher em um estado de fúria, o qual irá se transformar em desespero quando ela se dá conta de sua insuportável situação de solidão e como isso tende a não ter fim. Em uma cena comovente, ela chora copiosamente, como um bebê recém-nascido, ou seria melhor dizer, como alguém que apenas teme a chegada da morte e de maus auspícios?
Um dos motivos pelos quais escolhi a história de Kali Maa como um simbolismo e complemento para essa história se liga diretamente em sua relação com o tempo e a morte, não somente do ponto de vista físico, mas sim com o fim do Ego. Apesar de sua meia-idade, Tereza é imatura em relação a suas próprias emoções e em relação ao que lhe parece verdadeiro, se apegando à aparência, sejam das coisas, dos outros ou do amor que tanto busca. Desesperada por se ver livre da presença obstrutiva de si mesma, ela se envaidece por aquilo que seu dinheiro pode comprar até aperceber – se de que por maior que seja sua vontade, sua postura em relação as outras pessoas e a si mesmo a leva para caminhos autodestrutivos e irreconciliáveis com seu desejo genuíno de amar e ser amada.
O nome Kali vem da raiz sânscrita Kal que significa tempo. Existem várias origens para a Devi, desde a forma mais irada de Durga Devi presente no texto Devi Mahatmyam, ou de Parvarti Devi presente no texto Linga Puran, mas irei considerar aqui sua versão adotada em alguns cultos tântricos como o Kali Kula ou o Kaula, no qual ela é a própria Mãe Divina e origem de toda a criação. Enquanto Mahakali, ela tem dez braços e em uma de suas dez mãos carrega a cabeça de um Asura Daruka do qual ela bebe o sangue para evitar que ele amaldiçoe toda sua criação, usando, ainda, uma guirlanda de cabeças humanas que representa as infinitas mortes e renascimentos. Toda sua iconografia faz relação com a superação do Ego, da Ignorância e do Apego.
Todo o discurso de Paraísos: Amor me evocou na memória a figura da Deusa, pois a todo instante somos provocados com sequências de sofrimento emocional, vindo tanto da busca irrefreada de amor romântico por parte de Tereza, como de todas as situações pelas quais os homens com os quais ela se envolve na trama passam por dinheiro.
Uma última cena me vem em mente: Tereza, após tudo o que passou, apenas continua caminhando pela orla da praia, pelos mesmos lugares nos quais ela tanto sofreu como fez sofrer. Não há grandes finais, a vida apenas continua. Assim, penso, dá para dizer que o Tempo que tudo devora também ensina, restando a nós apenas aprendermos e prosseguir.
Paraíso: Amor (Paradies: Liebe) – Áustria e Alemanha, 2012
Direção: Ulrich Seidl
Roteiro: Ulrich Seidl, Veronika Franz
Elenco: Margarete Tiesel, Peter Kazungu, Inge Maux
Duração: 120 minutos