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Crítica | Paranoia Agent

por Kevin Rick
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Não consigo nem imaginar alguém começando a assistir Paranoia Agent sem um contato prévio com a filmografia do seu criador, Satoshi Kon. Não que a obra não funcione como uma experiência isolada, mas o nível de estranheza que o espectador irá encontrar nesta minissérie narrativamente lunática é, para ficar no eufemismo, insano. Assim como outros trabalhos do cineasta, Paranoia Agent mistura a fantasia com a realidade, e busca na animação surreal um campo de criatividade ilimitada para falar sobre temáticas em relação à fama, arte, entretenimento, sociedade moderna, tecnologia e mais um zilhão de áreas que entrarei com maiores detalhes posteriormente. Contudo, aqui, Satoshi estabelece a estrutura mais comum de animes ao trazer uma obra episódica, mas não se engane, Paranoia Agent é muita coisa, menos sua típica animação televisiva japonesa. Aliás, a minissérie é exatamente o inverso do gênero ao pensarmos na sua proposta artística, se dispondo a criticar a própria mídia.

Simplesmente falar de Paranoia Agent é uma tarefa complicadíssima, mas vamos por partes, começando pela premissa: Os cidadãos de Mushashino, Tóquio, começam a sofrer ataques de um delinquente juvenil apelidado de Shonen Bat, que transita pelas ruas da cidade agredindo pessoas com um bastão de beisebol. Soa como uma sinopse simples para uma possível história de investigação policial, e em certa medida o anime, superficialmente falando, assume o thriller policial com os detetives Keiichi Ikari e Mitsuhiro Maniwa tentando desvendar a identidade do criminoso através dos depoimentos das vítimas, mas esse núcleo é só a ponta do iceberg de uma obra mergulhada em metáforas, simbolismos e críticas sociais, especialmente à cultura japonesa.

A primeira piscadela de Satoshi está no apelido do assaltante: “Shonen”, utilizando o famoso gênero/demografia japonesa de animes, que se tornou termo de referência global ao pensarmos na sua habitual obra de mangá/anime, como personificação de um escapismo da realidade. Todas as pessoas que Shonen Bat ataca, na primeira metade do show, acordam se sentindo melhores, aquém de seus problemas reais. Dessa forma, Satoshi examina o impacto de subterfúgio e consolação que o entretenimento japonês tem com seu público, e também desenvolve seu discurso existencial sobre a maneira paradoxal que enxerga sua própria arte: libertadora, mas anestesiante no sentido de proporcionar um escape às pessoas que não querem confrontar a realidade.

E este é um tema tão inerentemente japonês ao vermos como a “cultura de pressão” do país exerce essa necessidade de um sedativo, seja artístico ou em outro campo de fuga, aos seus cidadãos, e por isso nos deparamos com tantas estranhezas e fetiches ao analisarmos o consumo e o público de mangás/animes, assim como outras áreas mercadológicas japonesas como a fixação por bonecos estilo Hello Kitty, a procura da socialização por meio de internet e a obsessão controversa com corpos femininos infantis, conectando-se à grande problemática do machismo no país, muito bem vista no retrato obsceno da mulher em animes.

E aqui entra a estrutura de Paranoia Agent, que propõe grande parte dos episódios como uma narrativa autocontida mantendo a linha comum dos ataques do Shonen Bat. No primeiro episódio, conhecemos Tsukiko Sagi, uma designer que está sofrendo com pressões trabalhistas para cumprir deadlines, e após ser atacada pelo delinquente juvenil, se vê livre do estresse diário do seu emprego. Essa temática das péssimas condições trabalhistas do Japão é carregada para outro episódio metalinguístico sobre um grupo de animadores sofrendo para bater metas no estúdio, e a narrativa vai desenvolvendo o âmbito da pressão na procura de um refúgio, encontrando-o na fantasia, na arte e, aqui, no agente da paranoia.

E não digo que Shonen Bat é o agente da paranoia, mas sim o produto de um fenômeno social japonês – esse sim o alongador da paranoia – desiludido com a realidade, em constante procura pelo abandono do concreto e do tangível. Não irei adentrar em maiores spoilers, mas outros episódios trazem diferentes problemas culturais japoneses, como um suicídio coletivo marcado por três pessoas online, com uma delas fugindo do preconceito do homossexualismo; uma moça em conflito com sua sexualidade dentro dos padrões sociais japoneses que normalmente colocam o pudor como moralidade; a séria complicação da exclusão e invisibilidade de sem-teto no Japão, assunto que Satoshi havia abordado em Padrinhos de Tóquio; um homem imoral que se esconde atrás de uma máscara bondosa, mas tem obsessão com o corpo infantil de sua filha (um grande distúrbio social japonês, bastante difícil de entender); a meritocracia infantil, outra situação com intensa presença na cultura de tensão individual para triunfar; uma história criticando o impacto do “Isekai” em adolescentes; e por aí vai.

Não é como se a sociedade japonesa fosse apenas um buraco de péssimas situações, e grande parte destas temáticas abordadas são globais, e aí entra a pluralidade atemporal do anime ao pensarmos no humano, independente do país, mas Satoshi realmente focaliza o comentário social na cultura da sua nação. Quem aí nunca disse ou ouviu “japoneses são estranhos”, e, bem, pensando nessas áreas que a obra aborda, existe uma grande bizarrice na maneira que a arte é consumida por lá. E o cineasta toca na ferida sem dó e piedade, e apesar do tom da minissérie ser tragicômico, as mensagens são totalmente impactantes e colocadas para reflexão social sem medo de criticar.

E a animação abre o espaço para a inventividade de Satoshi flutuar na narrativa nada objetiva, com episódios diluídos no thriller psicológico com um aspecto realista, principalmente no núcleo investigativo, outros navegando em fantasia, com o Isekai colorido tomando conta da tela, daí pulamos para um capítulo que quebra a quarta parede ao nos situar do processo da animação, com rabiscos e sketchs, além de um tom documental assumindo a narrativa. Tem uma sequência geométrica bacana, quase renascentista, e alguns momentos de aquarela em takes mais despirocados. Além disso, o criador brinca com a caracterização do Shonen Bat, ora menino, ora monstro, na proposta do personagem como personificação da procura pelo escapismo, constantemente desenvolvido de maneira negativa no medo de confronto com a realidade, e não “só” como entretenimento.

Note que falei bem pouco das partes mais objetivas da história da minissérie, e fiz isso por dois motivos: para não entrar em grandes detalhes ou no desfecho, pois seria roubar a experiência de quem não conhece o anime, e principalmente porque Paranoia Agent desloca-se da objetividade, quase um quadro de ideias desgarradas de Satoshi, misturadas em uma narrativa nada coesa, mas simplesmente delirante e reflexiva. E o melhor de tudo? Nada é expositivo ou mastigado para o espectador, com tudo acontecendo nas entrelinhas, forçando o espectador a uma atividade artística/social que realmente engrandecerá sua perspectiva em vários âmbitos societários. O cineasta mergulha em várias temáticas comuns da sua filmografia para conceber sua obra mais metafórica, simbólica e crítica, tanto das estranhezas e problemas sociais japoneses, como também da maneira paradoxal e existencial que enxerga sua própria arte, algumas vezes otimista, como em Atriz Milenar e Padrinhos de Tóquio, ou pessimista como em Perfect Blue, ali em relação ao mercado e a fama, e aqui em Paranoia Agent, na maneira que é consumida como uma fuga de confrontar a realidade, relacionando-se a todas essas dificuldades contemporâneas em relação à socialização, depressão, pressão trabalhista, entre outros. Um anime que é verdadeiramente um estudo social.

Paranoia Agent | Japão, 2004
Criador: Satoshi Kon
Direção: Satoshi Kon, Takuji Endo, Hiroshi Hamazaki, Takayuki Hirao, Nanako Shimazaki, Kôjiro Tsuruoka
Roteiro: Satoshi Kon, Seishi Minakami, Tomomi Yoshino
Elenco: Shôzô Îzuka, Toshihiko Seki, Mamiko Noto, Ryûji Saikachi, Kotono Mitsuishi, Daisuke Sakaguchi, Toshihiko Nakajima, Mayumi Yamaguchi, Haruko Momoi, Kenji Utsumi, Akio Suyama, Hisako Kyôda, Mîna Tominaga, Yasunori Matsumoto, Kiyoshi Kawakubo, Nana Mizuki, Diasuke Gôri, Keiji Fujiwara
Duração: 311 min. (13 episódios)

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