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Crítica | Pasqualino Sete Belezas

Cinema sob suspeita: o Sete Belezas de Lina Wertmüller.

por Fernando JG
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Não há nada neste filme que seja tão brilhante e sugestivo quanto o enfoque nos olhos dos personagens. São curvaturas faciais que naturalmente buscam indicar o senso emocional  daquilo que está representado em imagens diante da tela. Por que a cineasta opta por trabalhar a cena do julgamento de Pasqualino em modo silencioso, mudo, apenas filmando o olhar dos personagens que compõem a cena num close-up muitíssimo bem feito? Ora, como uma boa diretora, ela quer manipular os afetos do público e opera a todo tempo como se dissesse: “aqui você deve sentir pena”, “aqui, amor” e assim por diante. Por isso, não raramente, estamos prostrados perante Giancarlo Giannini e seu anti-herói Pasqualino Sete Belezas e seu obsessivo olhar fulminante, se valendo de uma interpretação dramática incisivamente amparada num amplo uso de expressões faciais que maliciosamente seduzem o seu interlocutor. Os seus olhos rebaixados e lacrimejantes, com feição de pena e martírio, transformam o seu rosto numa ação retórica, convencendo a qualquer um a fazer o que ele quer. Uma atuação irretocável.

Se iniciei o texto já chamando a atenção para um elemento primordial da narrativa, é que este é apenas um dos inúmeros aspectos relevantes do filme desta senhora Lina Wertmüller (1928 – 2021), italiana que teve a proeza de se tornar a primeira mulher indicada ao prêmio de direção por Sete Belezas, um trabalho genial. Embora os aspectos técnicos deem conta de explicar a qualidade do longa-metragem, é possível que mesmo sem saber explicá-los passo a passo a película possa ser caracterizada como “obra-prima”, “um grande filme”, porque o que ele toca diz respeito a uma espécie de sensibilidade humana, explicável à razão mas inexplicável aos sentidos, que apenas deleita aquilo que recebe. Os afetos, sobretudo da piedade, são universalizados e nos atinge profundamente. 

De maneira original e com uma montagem criativa, Wertmüller, excelente contadora de histórias neste filme, narra o enredo da trajetória de Pasqualino entre fugir da guerra e ser capturado pelos alemães como prisioneiro. Ainda que muito próximo da morte, ele faz de tudo para sobreviver. Estamos diante de um roteiro que evidencia sutilmente os problemas da guerra. É sutil porque a selvageria está escondida por trás do gênero cômico, que alivia o peso, mas só alivia cinicamente já que um olhar atento percebe o que está em jogo. A leitura desta senhora sobre a condição humana em um conflito é refinada e ácida. Lina W. com uma lâmina nas mãos nos corta enquanto sorri; nos bate já afagando. Demasiada humana, a cineasta percebe que morrer é liberdade e não teme ao colocar isso muito claramente. 

Ora, esta é uma obra que está plenamente inserida na tradição narrativa italiana e tem claríssimas influências de Giovanni Boccaccio e seu incontornável Decamerão e mesmo da Commedia dell’arte. As aventuras pitorescas e caricatas que ocorrem no limiar da tragédia são características de um Boccaccio que serve como um prato cheio para Wertmüller estabelecer o estilo de seu filme, que não se furta em utilizar de uma comédia italiana ultra satirizada e perigosamente venenosa. Ela sabe bem, a ponto de me deixar impressionado, manipular os gêneros cinematográficos. Como é possível que em Settebellezze a sátira e a tragédia ocupem um mesmo patamar de excelência? Quero dizer, nos entretemos e sorrimos com as aventuras de Pasqualino com a mesma intensidade em que nos apiedamos com as cenas finais. Mas é uma piedade sofrida, comovente, devastadora, enfim, melancólica. 

As intenções da cineasta são expostas já desde o início com a frase: “Para aqueles que fazem amor vestidos com uma bota imaginando estarem sobre uma luxuosa cama“. Por mais que seja cômico, só é engraçado porque tanto o personagem quanto a diretora tentam driblar o peso da tragédia. A película caminha sob suspeita, fugindo do impacto que é a temática de que está tratando. Quero dizer, deve-se olhar com cuidado para o uso da sátira para não ser enganado pela máscara. A passagem da sátira ao trágico é feita com naturalidade, demonstrando, como já disse exaustivamente, a genialidade daquela que está à frente do filme. Embora o roteiro seja estruturalmente labiríntico, a narrativa não se perde.

No entanto, o bom humor do estilo satírico, que contamina também o humor de seu próprio protagonista, vai perdendo força muito lentamente ao longo de dois atos, até que nos percebemos no meio de um clima dramático e intensamente melancólico. Veja que a estilística do filme, a perda de força da sátira e o triunfo do drama trágico, está indicando algo essencial: a esperança muitas vezes é só uma ideia, uma ideia que perde força diante de uma realidade mais paralisante do que ela. Pasqualino sobrevive à guerra, mas o que sobra dentro dele? 

Multigênero, o filme de Wertmüller está satiricamente próximo a uma moral trazida à luz pelo brilhante Saló ou 120 Dias de Sodoma e narrativamente pelo Decameron, ambos de Pier Paolo Pasolini. O arco final é catártico e novamente no retorno de Pasqualino para casa o que ganha foco são os olhos, sejam os olhos de amor de sua mãe, o olhar de surpresa de sua pretendente ou o seu mesmo, oblíquo, dissimulado, traumatizado. 

Pasqualino Sete Belezas (Pasqualino Settebellezze, Itália, 1975)
Direção: Lina Wertmüller
Roteiro: Lina Wertmüller
Elenco: Giancarlo Giannini, Fernando Rey, Shirley Stoler, Elena Fiore, Roberto Herlitzka, Piero Di Iorio, Ermelinda De Felice
Duração: 115 min.

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