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Crítica | Pássaros de Verão

por Gabriel Carvalho
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“Ventos fortes estão chegando agora
Eles apagarão as nossas pegadas na areia”

Ciro Guerra já tratou anteriormente de temáticas similares às apresentadas em seu novo projeto, também comandado pela cineasta Cristina Gallego. Pois o seu O Abraço da Serpente, indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro, explorava o vasto desmanche cultural que a presença de estrangeiros ocasionara no rico cenário amazônico. Conhecimentos antigos e rituais passados, nesse caso, se perderam diante de um agressivo avanço territorial sobre as populações ameríndias, precisando resistir às missões catequizadoras e à exploração da borracha. Enquanto isso, Pássaros de Verão avança sobre os territórios áridos do povo Wayuu, proveniente da península de La Guajira, no nordeste da Colômbia e noroeste da Venezuela. O Ciclo da Borracha – período em que uma das atividades econômicas centrais era a extração de látex das seringueiras -, é, portanto, substituído pelo nascimento do narcotráfico colombiano. Assim, a era apresentada, conhecido como bonanza marimbera – dada a grande quantidade de cultivo e exportação de maconha no país -, se entrelaça com a história de uma família indígena, irreversivelmente impactada pelos novos valores nascidos em detrimento daqueles que, cultivados por gerações, se mantiveram intactos por não vivenciarem tais interferências externas. Entretanto, apesar do começo de um sistema criminoso ser retratado, os diretores estão mais interessados nos fins, especialmente nos fins das tradições e das culturas.

Ainda que as ambientações das obras sejam quase antagônicas – partindo de uma floresta tropical para o deserto de La Guajira – e as épocas diferentes – adentrando na segunda metade do século XX -, o capitalismo novamente retoma o seu papel como núcleo da corrupção. Ao passo que, no longa anterior de Guerra, o xamã Karamakate prontamente recusava o dinheiro de um americano, os personagens de Pássaros de Verão sofrem as consequências de o aceitar e, mais que isso, não pensar duas vezes antes de querer mais e mais lucros. Com isso, nasce um enredo que arrematou comparações com as narrativas presentes em clássicos como Scarface e O Poderoso Chefão – apesar de não se equiparar em complexidade ou quantidade de personagens marcantes. Mas as especifidades também importam e, aqui, a separação da obra em capítulos, denominados cantos, promove um teor folclórico que antagoniza as perdas graduais da essência cultural. Quem vive abertamente o embate sugerido, porém, é o protagonista, Rapayet (José Acosta). Diante do rito feminino de passagem de Zaida (Natalia Reyes), o personagem se interessa em se casar com a garota. Consequentemente, para pagar o dote necessário à família dela, Rapayet se envolve com o comércio de maconha. O protagonista, desse modo, não apenas assume responsabilidades com a tradicional família da pessoa com quem casa, como também com os criminosos a que se vincula.

Da ascensão de um pequeno grupo familiar em uma primeira instância, o longa-metragem já antecipa, porém, a desestruturação procedural do que antes era vigente naquele meio. Ou seja, Ciro Guerra resgata de novo, como aconteceu no seu outro projeto, as canções perdidas de povos violentamente transformados, precisando se readequar a novas tentações. Assim, pelo prenúncio de que vozes serão caladas, o filme lamenta rito a rito revogado. Essas aproximações temáticas entre obras distintas são permitidas, contudo, pela contribuição no roteiro de Jacques Toulemonde Vidal, escritor igualmente presente em O Abraço da Serpente. O artista, em parceria com Maria Camila Arias, contextualiza perfeitamente as tantas tradições do povo Wayuu, permitindo que o contraponto entre honra e ambição seja claro e, mesmo assim, poderoso. Os meandros capitalistas provocam Rapayet naturalmente. Já a matriarca da família, Úrsula (Carmiña Martínez), encarna a voz das obrigações, que pincela, cena a cena, os equívocos que não podem ser tomados pelo personagem. Mas, em termos de interpretação, a presença de Martínez engole o tímido Acosta. Essa desconstrução, portanto, é a matriz da obra, que traz rituais, elementos e conhecimentos tão peculiares de um lado, e, do outro, os sucumbe a carnificinas extremamente banais. Na verdade, bem quando a primeira arma de fogo aparece, ela denota ser estrangeira ao ambiente em questão.

Do distanciamento dos personagens aos seus costumes originais, Pássaros de Verão concretiza a esperada separação com o terceiro canto, que assim encaminha o longa-metragem à derrocada dos traficantes apresentados. Os primeiros planos da pomposa casa nova de Rapayet celebram um oásis, mas protegido por seguranças armados e longe do seu próprio povo. Para traçar isso, a cinematografia captura exemplarmente o quão inóspito é esse paraíso capitalista. O vale tudo pelo ouro redefine as morais – e uma cena, que exemplifica a destruição da honra pela riqueza, é até explícita nesse sentido. Os protagonistas, entretanto, não são vítimas inocentes de um sistema cruel, mas tão esfomeados quanto o modelo de negócios introduzido àquela região. Engolidos são, consequentemente, por valores impuros, os quais são diagnosticados até excessivamente por roteiristas que reiteram bastante uma ideia. O roteiro, no caso, não se previne nem de repetir o mesmo personagem: Leonídas (Greider Meza) e Moisés (Jhon Narváez) incorporam impulsos pecaminosos iguais, aparentando redundância. Em contrapartida, reafirma-se a pontuação fúnebre do longa, traçando meticulosamente o fim daquele passado – hoje, estórias. Não é à toa, por isso, que os céus de La Guajira, no plano derradeiro do filme, terminam tão próximos aos dos sonhos proféticos de Zaida, que anunciam as mortes de entes queridos: não são mais azuis, porém, roxos.

Mesmo assim, transcende-se algo com a obra, ultrapassando uma constatação por si só para se procurar eternizar, ao menos em sonhos e memórias, esse passado esvaído. O cinema, no caso, personifica a melancólica canção que tanto abre quanto encerra o longa-metragem, quase como um testemunho do que se perdeu, reencenando a violência e ganância que mais tirou das pessoas do que as cedeu. Para que ninguém se esqueça do que os ventos do verão apagam, Ciro Guerra e Gallego apresentam ao mundo esta obra, imergindo o espectador em um espaço-tempo no qual as pegadas efêmeras destas pessoas ainda marcavam o solo, mesmo que prestes a sumirem. Ora, a favor de carros, meios de transporte mais rápidos que animais, perdeu-se o rebanho. Em troca da cerimônia, rejeitada para margear uma abordagem amorosa grosseira, perdeu-se o romance. Daquela comunidade repleta de rostos amigos, os gananciosos saíram para viver – e em alguns casos morrer – sozinhos, abandonados. Curioso, por sinal, que tanto a aldeia dos Wayuu quanto a casa de Rapayet são ambientes isolados do restante do mundo, mas, se no primeiro caso sugere-se uma mística, no segundo consagra-se o despertencimento, a triste perda de uma identidade. Do mensageiro da palavra à proibição de se sujar sangue em terra Wayuu, as tradições são desfeitas, em prol de novas dinâmicas, sujas, priorizando poder acima de família e dinheiro acima de cultura.

Pássaros de Verão (Pájaros de Verano) – Colômbia, 2018
Direção: Ciro Guerra, Cristina Gallego
Roteiro: Maria Camila Arias, Jacques Toulemonde Vidal
Elenco: Carmiña Martínez, Natalia Reyes, Jhon Narváez, Greider Meza, José Vicente, José Acosta, Juan Bautista Martínez, Miguel Viera, Sergio Coen, Aslenis Márquez, José Naider, Yanker Díaz
Duração: 125 min.

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