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Crítica | Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade

Era uma vez o Moderno.

por Fernando JG
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Oh! este orgulho máximo de ser paulistamente

Mário de Andrade

Vindo Mário de família catolicíssima, eis que esse jovem rapaz chega em casa, no meio de um jantar em família, com uma escultura feita por Victor Brecheret, que emulava a cabeça de Cristo… de trancinhas… Feio, medonho. Como ele mesmo diz, para a “parentada”, aquilo era pecado mortal. Estava feita a confusão com insultos de toda ordem e Mário alucinado de ódio no meio de tudo aquilo. Depois do jantar, sobe ao quarto já com vontade de explodir o mundo, então olha pela janela, vê a São Paulo iluminada e lhe vem à cabeça: “Pauliceia Desvairada”. Nascia então, de um impulso odioso, o maior emblema da poesia brasileira moderna do século XX.

Como sabem, a Pauliceia não é publicada na Semana de 1922, que, aliás, fora organizada pelo grupo de São Paulo — Mário de Andrade, Paulo Prado, Oswald… –, mas ao final deste mesmo ano. A obra inaugura, deste modo, uma cidade moderníssima, uma espécie de mimese londrina e parisiense, com suas luzes, garoa fina, tempo nublado, avançada tecnologicamente, com a desenvoltura de prédios, grandes avenidas, múltipla em cultura, mistura de idiomas, cosmopolitismo, população abundante, isto é, São Paulo representa, em termos abrangentes, o triunfo da cidade moderna na América do Sul. Não poderia ser escolhido, diante disso, outro lugar para a realização da Semana, tampouco outra cidade que fosse inspiração para a obra marioandradina. 

Neste embalo da atualização da sociologia da cidade, há, pelo óbvio, a renovação cultural, que cunhou chamar de modernismo, coisa e tal. A Pauliceia, vanguardista que só ela, abre de vez o caminho para a liberdade poética no Brasil. Cabe lembrar que, há apenas alguns anos atrás, os preceitos poéticos mundiais eram regidos por regras consolidadas, tratados de poesia, que ditavam a métrica, o ritmo, a forma e o gênero que determinado tipo de poema deveria seguir. Todos liam, obrigatoriamente, as Poéticas de Aristóteles e Horácio e a Arte Poética de Boileau para saber como escrever um bom poema. É neste sentido que a arte moderna se opõe aos preceitos regulares da feitura de um poema, reclamando que não é possível aprisionar a arte à frieza das regras, já que ela, a arte, surge do gênio, da liberdade, da subjetividade, de modo que as palavras, as frases, os temas, as formas etc. sejam simplesmente livres. É aí que se encontra a gênese primária da Pauliceia Desvairada, e como se vale, de modo pioneiro, desta ruptura, inflamando a poesia moderna no Brasil, configura obra de importância canônica, emblemática e prototípica para a Literatura Brasileira. 

A Pauliceia é, enfim, uma obra poética sobre a cidade natal de Mário, como se nota em “Inspiração”, poema que abre a seleta de poesias: “São Paulo! Comoção de minha vida.”  No seu íntimo, podemos caracterizá-la como uma experiência estética da renovação que se pregava nos anos 20. Observamos um sujeito lírico multifacetado que caminha ponto a ponto da cidade moderna, revelando sua estrutura social, geográfica, climática, entre outros pontos que evidenciam na forma do poema a sua intencionalidade de fazer um retrato não do Brasil como fizera Paulo Prado em 1928 (Retrato do Brasil), mas um retrato da cidade, como há pouco fizera Baudelaire nas Flores do Mal a respeito da moderna cidade de Paris. Então, de certo modo, estamos diante de uma obra extremamente regional, afinal, o regionalismo não é só aquilo que está fora do circuito econômico Rio-São Paulo.

Outro ponto alto são as descrições da paisagem urbana. Num poema como Paisagem nº1, vemos a cidade paulistana sendo descrita como “Minha Londres das neblinas finas”, num claro aceno a essa ideia de cosmopolitismo, outra marca do modernismo brasileiro, que depois ganha força com Oswald em Pau-Brasil, seu livro de estreia. Nesta associação de São Paulo com a capital londrina já tem um pouco da antropofagia que marca os anos de ouro do primeiro movimento. Segue-se esta tendência do regional/universal em Anhangabaú e O Trovador, ambos poemas que trazem esta ideia de uma ruptura das fronteiras nacionais/mundiais. E o que mais chama a atenção é que todo esse senso estético de Mário de Andrade se dá numa vivência puramente brasileira, uma vez que ele nunca viajara para fora do Brasil. 

Mas é talvez naquela que é a mais conhecida das suas criações, a Ode ao Burguês, devidamente declamada durante a Semana de 1922, que encontramos o puro suco da crítica à burguesia paulistana nascente. São ironicamente emblemáticos e extremamente ácidos os versos que a retratam: “Eu insulto o burguês / A digestão bem feita de São Paulo / Dono das tradições / “- Ai, filha, o que te darei pelos teus anos?”, “- um colar… conto e quinhentos” / Cheirando a religião e que não crê em Deus / Ódio vermelho / Sem perdão”.

A obra ainda tem grandes aproximações com a música, com a teoria musical, coisa que está bem explicadinha no Prefácio Interessantíssimo, que antecede os poemas. Neste prefácio, Mário escreve uma espécie de “poética” a respeito da própria arte, mas prega, sobretudo, contra a arte mimética, louvando o triunfo da arte moderna sem amarras. Nota-se, ainda, num olhar atento, que a seleta de poesias atende aos três pilares do movimento: o direito à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional, colocando o texto poético não mais em linguagem academicista (como bem evidenciado por Manuel Bandeira em Os Sapos, poema que é conhecido por ter sido vaiado na Semana ao criticar a linguagem parnasiana), mas em linguagem coloquial, aproximando o público da obra. 

A Pauliceia Desvairada mostra-se, enfim, engajada politicamente, extremamente inovadora em termos de arte poética, divertida, multifacetada, retratista e, sobretudo, simples de ser lida e apreciada. Tudo está ali entregue, bastando mesmo que leiamos poema por poema, sem o pedantismo conferido à tradição anterior ao Século XX. A forma conferida a essa obra abre as portas para o que viria adiante em Macunaíma e mesmo para o experimental – e lindo – Amar, Verbo Intransitivo. Esta bela homenagem, e atualíssima, à cidade arlequinal, é um acontecimento irreparável no curso da poesia brasileira, notável pelo refinado gosto, senso de humor e presença. Mário sempre vale a pena. 

Pauliceia Desvairada (Brasil, 1922)
Autor: Mário de Andrade
Editora: Novo Século
Páginas: 92

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