Pavana é o nome de um estilo de dança medieval/renascentista popular entre a nobreza do século XVI que se caracteriza por sua lentidão e por seus passos processionais. O autor britânico Keith Roberts apropriou-se do termo para intitular sua coletânea de seis contos e um epílogo de forma a usar essa lentidão para caracterizar, em linhas gerais, o fascinante cenário de História Alternativa que ele propõe, em que a Rainha Elizabeth I foi assassinada em 1588, ainda no início da Reforma Protestante que afastaria o Reino Unido do jugo do papado e colocaria o país na rota de se tornar a maior potência da época, atropelando Espanha e Portugal.
Nessa conjectura de Roberts, que ele contextualiza em um prólogo do livro, o assassinato da rainha levou a uma guerra civil no arquipélago britânico que, então, tornou possível a invasão bem sucedida da Armada Espanhola. O resultado é que a Reforma Protestante foi suprimida e a Igreja Católica tornou-se hegemônica na Europa, com o papa tornando-se uma espécie de imperador, como também no chamado Novo Mundo, em razão da colonização. Com o papado controlando cada aspecto da vida cotidiana, o mundo foi mantido da Idade Média por muito mais tempo, com os avanços tecnológicos sendo consistentemente censurados pela Igreja, de forma a facilitar seu controle absoluto do mundo. No entanto, o autor não se interessa em lidar com esses primórdios de seu conceito e faz com que toda a narrativa de seus contos subsequentes se passem a partir do presente da época em que ele os escreveu, ou seja, o final da década de 60 do século passado e as décadas seguintes.
Essa escolha de Roberts é ao mesmo tempo frustrante e interessante. Frustrante, pois os detalhes da evolução – ou melhor, involução – trazida pela onipresença da Igreja Católica dariam histórias absolutamente incríveis. Interessante, pois o que o autor faz é inovar ao estabelecer um fait accompli de séculos que é abordado por meio de seis contos cuja interligação maior é se passarem nesse universo que ele criou, ainda que os descendentes do protagonista do primeiro conto – The Lady Margaret – que logo estabelece que o vapor ainda é a tecnologia de transporte mais rápida da época, sejam abordados em alguns contos seguintes que ampliam o escopo da obra. Na medida em que a leitura avança, porém, a frustração vai desaparecendo, pois Keith Roberts trabalha com recortes pequenos de diversas vidas nesse século XX atrasado que imaginou, apresentando personagens fascinantes que passam a povoar e a ilustrar com muita clareza as limitações trazidas pelo controle da tecnologia pelo papado e, mais ainda, o quanto o profundo e hegemônico enraizamento de uma religião suprime ideias e iniciativas.
Inevitavelmente, Roberts lida com as “rachaduras” nessa hegemonia, semeando ideias e ações que tenderiam a reverter o cenário opressor que ele cria. É assim com o conto Brother John, em que o personagem titular revolta-se contra a Inquisição – que sim, continua por 400 anos – e decide tornar-se um rebelde e é mais fortemente assim com o último conto, Corfe Gate, que usa o que hoje é uma ruína histórica para simbolizar o avanço do descontentamento com a Igreja Católica. Em outras palavras, o autor nos faz passear pela Inglaterra alternativa que ele construiu usando histórias pessoais de personagens muito interessantes para ilustrar seu universo opressivo, resultando em uma leitura variada e engajante.
Isso até o último conto, o epílogo, ou Coda, para seguir a estrutura musical, em que Keith Roberts faz algo que, desconfio, foi exigência de seu editor para compilar os contos na forma de um livro: ele marreta um “final” que, muito sinceramente, é tão artificial, que chega a ser irritante, especialmente porque as próprias ações da Igreja Católica são relativizadas, quase como se ele quisesse dizer que uma Inquisição de 400 anos pudesse ser “desculpada” por uma estratégia de longuíssimo prazo dos sucessivos Papas-Imperadores. Sim, ele entrega um final, mas teria sido muito melhor se Corfe Gate fosse esse final, já que o conto definitivamente aponta para as mudanças que poderiam vir anos a frente, sem precisar de um remendo desses que Roberts insere quase que de qualquer jeito no final.
Mesmo se traindo, Keith Roberts escreveu, pedaço por pedaço, uma baita obra de História Alternativa que, infelizmente, pouca gente efetivamente conhece e que, diante da efervescência atual de uma religiosidade radical das mais diferentes fés, mereceria destaque. Pavana não é, porém, o que normalmente se espera desse subgênero literário e não oferece – a não ser no já comentado final – respostas definitivas a nada e não aborda o macro, preferindo o micro e o foco em seus personagens. Mas talvez esse diferencial seja justamente seu grande valor.
Pavana (Pavane – Reino Unido, 1968)
Autoria: Keith Roberts
Editora: Rupert Hart-Davis Ltd. (Impulse)
Data original de publicação: 1968
Páginas: 288