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Crítica | Peça Inacabada Para Piano Mecânico

por Luiz Santiago
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Terceiro longa-metragem de Nikita MikhalkovPeça Inacabada Para Piano Mecânico (1977) foi baseado no primeiro drama de Anton Thekhov e coloca frente a frente duas Rússias inimigas: a monárquica e a revolucionária. Ambientado em fins do século XIX, o drama se desenvolve em uma casa de campo onde um grupo de aristocratas reúnem-se para um final de semana lânguido e ocioso. Aí, deparam-se com crises e frustrações (pessoais e alheias) capazes de mudar todas as expectativas de uma estada tranquila regada a chá, caviar e música clássica.

De Platonov, obra chekhoviana na qual se baseou para escrever o roteiro, Mikhalkov trouxe o olhar satírico para as classes sociais, seus motivos quase burlescos de disputa material e ideológica e a derrocada dos valores tradicionais que ainda sustentavam a desmedida sociedade de sangue azul, ao passo que e o garbo sutil da burguesia não se furtava em denunciar os excessos de seus convivas e louvar as próprias conquistas através do trabalho. Além das questões sociais, o filme penetra no campo dos sentimentos, escancara a desfaçatez do casamento e demonstra a que ponto pode chegar uma alma sufocada por obrigações sociais que não são as suas. Através de uma comédia ácida que muito nos lembra o estilo de Ernst Lubitsch, Mikhalkov realiza um filme teatral e plasma com louvável eficácia o ridículo drama do amor e as mudanças ideológicas de um povo.

Realizado em uma União Soviética que passava por inúmeras mudanças internas — mesmo em regência do duro governo de Leonid Brejnev –, Peça Inacabada… é um grito pela liberdade de expressão e por mudanças políticas. Muito mais do que o irmão e também cineasta Andrei Konchalovsky, Mikhalkov denuncia os excessos políticos e tem um olhar muito particular sobre o poder e as largas mudanças pelas quais este passa ao longo do tempo. Nesse terceiro longa de sua carreira, o modo teatral advindo da adaptação é usado para representar de maneira muito legítima esse palco de insatisfeitos atores sociais.

Podemos entender o filme como um fluxo de diferentes dramas. Na abertura, temos apenas tomadas externas, conversas espirituosas relacionadas a conquistas sexuais, emancipação feminina e o modo de vida dos vizinhos e conhecidos. Predominam aí os planos médios e gerais, impedindo-nos de ver mais de perto essa tão aprazível vida ao ar livre. Desde essas cenas iniciais, percebemos a cuidadosa maneira de Mikhalkov arquitetar níveis diferentes à profundidade de campo, seja através de elementos do cenário, da disposição de objetos e pessoas em cena ou da montagem milimétrica de Lyudmila Yelyan, que segue uma convenção de trabalho com espaço muito comum nos filmes russos explicada através da sequência: micro espaço dramático + espaços adjacentes em contraponto + ligação cênica entre os espaços = um grande plano dramático e revelador. Diferente da montagem dialética, esse tipo de edição tetra-espacial exige pouca reflexão do espectador, estendendo o filme por uma área menos crítica nas entrelinhas e mais expositiva.

A composição dos personagens em Peça Inacabada… sai diretamente da Fábrica do Ator Excêntrico. A cada um dos espaços diferentes e em variados momentos da projeção um ou outro personagem entra em crise e surta, muitas vezes alimentando um estilo de comédia digno de Molière, só que mais politizado. Além desses momentos de excentricidade cênica, que na verdade refletem as enfermidades psíquicas de cada um, a direção de atores realizada por Mikhalkov é algo que nos impressiona. Entre o natural e o bufão, o ótimo elenco conseguiu trazer à tona em uma disputa teórica, o que nas ruas de Moscou e São Petersburgo se dava com armas e mortes. Valores sociais e pessoais são contrapostos; a política e as organizações sociais são discutidas; o amor e a devoção interesseira são demonstrados, fazendo com que a obra ganhe esse caráter de discussão da vida política na vida privada.

Embora o fenomenal compositor Mikhail Glinka seja citado em um dos diálogos da obra, a trilha sonora de Peça Inacabada… é marcada por composições de Liszt, Donizetti e Rachmaninov. Como uma cortina que se estende no palco da casa de campo, a música não é usada como ilustração, embora um de seus efeitos seja esse, mas sim como um divisor entre as furiosas discussões verbais e o silêncio assustado e constrangedor que se faz em alguns momentos.

Mikhalkov dirige um filme que, embora adentre ao território da política, da psicologia e do existencialismo, não despreza as doses de absurdo que a vida encerra. Sua abordagem perdida no tempo, com um drama cômico captado por uma maravilhosa fotografia, termina com uma desesperança vaga e viciosa. Perdidos em um território histórico que muda a face mas não altera a estrutura, os personagens estão condenados ao limbo de uma vida praticamente sem sentido, guiada por obrigações e máscaras sociais e convicções políticas que os fazem parecer membros uniformizados de uma fanfarra na linha do tempo da História da Rússia. Mesmo assim, o filme traz um delicioso encanto e pratica um excelente exercício satírico através da excentricidade alheia. Isso não só nos torna cúmplices do circo de bizarrices do espaço diegético, como também nos faz pensar na “fauna humana” em crise que nos rodeia diariamente. E na vida… como uma constante peça inacabada.

Peça Inacabada Para Piano Mecânico (Neokonchennaya pyesa dlya mekhanicheskogo pianino, URSS, 1977)
Direção: Nikita Mikhalkov
Roteiro: Aleksandr Adabashian, Nikita Mikhalkov (baseado na peça de Anton Chekov)
Elenco: Aleksandr Kalyagin, Mikhail Vassilyevich Platonov, Yelena Solovey, Sophia Yegorovna, Yevgeniya Glushenko, Sashenka Antonina Shuranova, Anna Petrovna Voinitseva, Yuri Bogatyryov, Sergey Pavlovich Voinitsev, Oleg Tabakov
Duração: 103min.

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