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Crítica | Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão

por Laisa Lima
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Se Pedro Almodóvar encontrasse sua própria Janela Indiscreta – referência conscientemente feita à obra dirigida por Alfred Hitchcock – ele, sem dúvidas, elevaria a “espionagem” alheia a um nível peculiar. A câmera que observa através de uma janela na cena inicial é a única afinidade vista em relação ao filme de 1954, afinal, não trata-se de um suspense investigativo quebra-cabeça, mas sim de Almodóvar. E o significado disso é um não utilizado pudor e uma forte “imoralidade” de aparência colorida. Em Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980) a preparação (de maneira amadora) do discurso propagado por toda carreira do artista tem, aqui, uma de suas primeiras exibições.

Um pé de maconha e a vingança pelo estupro de sua proprietária dá início a união das figuras referidas no título do longa-metragem. Pepi (Carmen Maura) é a visionária e a tal dona da plantação; Luci (Eva Siva) é a esposa submissa e com intensos desejos sexuais, do policial estuprador; e Bom (Alaska), cantora de punk, condensa toda sua raiva pelo machismo vigorante no auxílio do “corretivo” tramado por Pepi e destinado ao marido de Luci. Reparando na mescla de personalidades embutidas na centralidade da obra, a única possível convergência entre elas está na forma satírica e libertária com que são tratadas. A partir desta premissa, pode-se deduzir que a trivialidade é colocada de lado, enquanto uma integridade comum passa a ser questionada. Esses questionamentos, então, delimitam a linha entre a indignação da sociedade, a eroticidade e o cinema de Almodóvar.

A temática de uma sexualidade – não sexualização – livre do sexo feminino já esteve personificada em protagonistas como Raimunda, de Volver (2006) e Pepa, de Mulheres à beira de uma Ataque de Nervos (1988). E em Pepi, Luci e Bom a representatividade do gênero acontece por intermédio de uma argumentação pouco complexa no quesito de profundidade narrativa, porém complicada no sentido do entendimento total dos pensamentos e desejos das personagens. Ainda nos anos 80 (ou até hoje), a expressividade desamarrada do cubículo em que são enquadradas as ideias das mulheres, não dialoga com uma transmissão fácil, já que as mesmas, tendo Luci como exemplo, se reprimem ao ponto de anular as vontades e necessidades inerentes a todo ser humano, tal qual o sexo. No filme, apesar da falta de um guia certo para a história, o aflorar e a espontaneidade das três principais faz-se o motivo de uma curiosidade contínua. 

A princípio, uma trama fechada se esmiúça em nuances abolicionistas para as amigas, que ou se descobrem, ou se reafirmam. Independentemente do temperamento delas, o longa-metragem não gira em torno apenas do individual, e sim de um coletivo que restringe sua libido e seu prazer em prol do julgamento alheio. Pelo intermédio da naturalidade de Pepi e Bom ao tratar de tais assuntos, a abordagem pode até se tornar orgânica para o espectador, mas certos momentos, como alguns envolvendo a outra constituinte do trio, Luci, e seu masoquismo, talvez não sejam confortáveis nem para o público atual. Contudo, o intuito de desmistificar a relação puritana entre o sexo e a mulher, pode ser concluído ao acompanhar a jornada de descoberta ou de emponderamento das três.

Almodóvar, sempre que possível, leva a comicidade e a paródia até uma sensibilidade ao relatar, majoritariamente, histórias sobre mulheres. Aqui, o cineasta transporta à seu filme uma narrativa bagunçada, na qual os acontecimentos se sobrepõem uns aos outros, sem a preocupação de estarem, por vezes, logicamente ligados. Nada é sobre a seriedade, até em temáticas que cabem nesse tom, o que pode ser comprovado nos diálogos despretensiosos e no estilo de música pop espanhola que quase sempre serve como pano de fundo para todos os eventos. A câmera amadora, de pouca qualidade e sem muitas movimentações, quase como em um filme B americano, auxilia, juntamente com as cores fortes nas imagens e as vestimentas futuristas e alegóricas de alguns personagens, na criação de uma originalidade sem precisar de muitos efeitos. Até porque, Almodóvar carece de pouco para a confecção de sua mensagem e seu universo.

 Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão não é um filme perfeito. A redução de algumas situações que parecem mais uma ratificação do que o longa-metragem se esforça para passar é considerável, mas certas cenas, as mais absurdas, não entram nesta consideração. A típica polêmica e o típico visual, ainda que menos rico, impregnado em Almodóvar, fazem desta obra um símbolo da emancipação feminina, seja corpórea ou mental. A falta de concisão e até sentido do enredo é existente, assim como ocorreu em diversas outras obras do diretor. No entanto, a preferência por tratar de conteúdos ainda não tão expostos composto não somente para mulheres, mas sobre mulheres, de uma maneira colorida e particular, é o grande trunfo de Almodóvar para seguir sendo considerado um dos maiores condutores das vozes das mulheres.

Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón – Espanha, 1980)
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Carmen Maura, Julieta Serrano, Eva Siva, Alaska, Félix Rotaeta, Cecilia Roth, Kiti Manver
Duração: 82 min.

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