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Crítica | Perdido em Marte, de Andy Weir

por Ritter Fan
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estrelas 2

A história de como Perdido em Marte (pois o elegante O Marciano não era óbvio o suficiente, não é?) tornou-se um cometa editorial é muito mais interessante do que o périplo pelo que o astronauta Mark Watney passa no Planeta Vermelho para sobreviver. Portanto, começarei lá nas origens, ainda em 2009.

perdido em marte capa andy weirEsse foi o ano em que Andy Weir, filho de um físico de partículas, decidiu começar a escrever um livro sobre um astronauta perdido em Marte que tivesse um forte viés realista. Para isso, ele pesquisou copiosamente as mais diversas fontes técnicas, estudando mecânica orbital, botânica, engenharia, química e voos espaciais de forma a trazer a mais completa verossimilhança à sua narrativa. Quando Weir estava em vias de acabar sua obra, passou a procurar agentes literários para fazer com que ela fosse publicada e, para sua surpresa, vários voltaram com negativas. E é aí que a força da internet se mostra presente e benéfica: ele decidiu auto-publicar seu trabalho por intermédio de um blog próprio, capítulo por capítulo, permitindo a participação de leitores. Seu esforço deu frutos e ele, então, foi um passo além, publicando o e-book na plataforma Kindle, da Amazon, cobrando 99 centavos de dólar. Ato contínuo, ele viu seu livro – o primeiro e até agora único em sua carreira – chegar na lista dos mais vendidos, com 35 mil cópias baixadas em três meses. A partir daí, o caminho “normal” estabeleceu-se novamente, com uma editora se interessando e publicando Perdido em Marte em formato de áudio-livro e, em seguida, outra editora lançando em papel. Não demorou e o livro tornou-se um fenômeno mundial.

Pena que é um fenômeno medíocre, o equivalente literário de um daqueles blockbusters hollywoodianos que só se preocupam com o verniz e esquecem do que está por baixo. Sei que navego contra o dilúvio de elogios rasgados ao livro, mas elogiar Perdido em Marte sem nenhuma trava crítica é contentar-se com pouco, muito pouco. Andy Weir conseguiu seu intento, não tenha dúvida. Ele escreveu um romance de hard science convincente nesse quesito. Seu personagem solitário, Mark Watney, é, como uma resenha elogiosa perfeitamente o categoriza na contra-capa, o MacGyver espacial. Falta oxigênio? Watney sabe como resolver separando os átomos de oxigênio e hidrogênio da água. Falta comida? Ora, ele é botânico e plantar batatas em Marte não deve ser tão impossível assim. Falta água? Então é só reverter o processo de separação de átomos, extraindo hidrogênio de combustível de foguete.

E tem mais, muito mais. Na verdade, Watney põe MacGyver no chinelo e, sem se deixar estremecer pelas mais tenebrosas situações – que ele encara sempre com uma esfuziante e absolutamente improvável alegria – ele faz coisas que nem a NASA e seu exército de cientistas 100% dedicados a resgatá-lo de Marte consegue. Ele é a causa em torno da qual o mundo trabalha em uníssono.

Weir usa, como artifício narrativo, o diário de Watney, com entradas ao longo de vários meses contando cada passo das ações dos astronauta. Temos que aceitar, claro, que Watney escreve for dummies, pois, do contrário, o leitor médio não entenderia metade do que ele faz. Isso é interessante bem no começo para estabelecer o ritmo, mas começa a irritar ainda no terço inicial, justamente porque há a necessidade quase patológica de tratar o leitor como alguém que não sabe nem mesmo que a fórmula química da água é H2O e que isso significa que são dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. O didatismo de Weir e de seu astronauta sabichão derruba o ritmo narrativo e, quando parte da ação é deslocada para a Terra, a coisa se complica ainda mais, com personagens que não têm identidade, conflitos ou mesmo qualquer traço de personalidade.

Aliás, falando em conflitos, eles simplesmente inexistem no livro. Sim, sei que o Planeta Vermelho inteiro conspira contra Watney, mas convenhamos que quando o quinto ou sexto problema nos é apresentado, sabemos que Watney o resolverá com um chiclete e dois clipes. É o padrão de MacGyver e é o padrão aqui. Mas se formos um pouco mais além é que começaremos a perceber que o trabalho de Weir, louvável que seja sob o ponto de vista científico, peca vexaminosamente em desafiar o leitor, em introduzir assuntos relevantes sob o ponto de vista sócio-político. Quando mencionei que não existe conflito, quis dizer exatamente isso: não há nada que se oponha a nada nesse livro. Não existem maquinações governamentais, não existem comentários críticos, não existe sequer o semblante de que a história se passa realmente no mundo em que vivemos, em que refugiados sírios são deixados à míngua por grandes e poderosas nações. O mundo de Weir é um mundo de faz-de-conta, que poderia muito bem povoar uma história dos Irmãos Grimm. Se bem que não poderia não, pois as obras dos Grimm são crivadas de lições importantíssimas que no mínimo nos fazem olhar para dentro, para um conversa intra-muros.

“Ah, mas esse não era o objetivo do autor e esse crítico não entendeu nada!” – muitos dirão. Humm, talvez esteja sendo cínico e pé no chão demais para quem só quer bobagens das mais rasteiras, mas uma obra de hard science que só se preocupa com seu próprio umbigo e esquece do mundo ao redor é uma contradição em termos. É conveniente demais passar por cima da “parte chata” do mundo para só lidar com veículos espaciais que não foram feitos para viagens longas, com a seleção de músicas e de séries de TV disponível a Watney e como adubar a terra com fezes congeladas. Olhem para obras literárias fundamentais da ficção científica – Asimov, Sagan e outros – e lembrem como há camadas e mais camadas por detrás do chamado technobabble. Sei que Weir não é – e talvez não pretenda ser – um Asimov ou um Sagan, mas por que não se pode esperar que seja? Por que simplesmente aceitar o que é simplista e bobo? Só por ser fácil de ler? Pensar é ruim? Machuca? Queima os neurônios? Ora, faça-me o favor…

Mesmo que por um segundo esqueçamos esta questão de fundo – que para este crítico é fundamental mesmo em obras construídas para “mero” entretenimento – há ainda obstáculos difíceis de serem ultrapassados para se considerar Perdido em Marte uma grande obra (ou mesmo apenas “boa”). Os personagens são mal desenvolvidos – especialmente o próprio Watney, que começa de um jeito e acaba exatamente igual a quem ele era, sem arco de crescimento – a narrativa é mal dividida, com grande parte dos capítulos dedicada a detalhes sobre como transformar algumas batatas em dezenas de batatas e quase nada para outros momentos que deveriam ser igualmente importantes e que acontecem mais para a frente. O livro é curto, mas poderia ter sido mais bem dividido, com uma distribuição equânime de “ameaças” e sem a correria extrema ao final. Faltou, aqui, muito claramente, um trabalho editorial sério que pudesse guiar Weir pelos meandros das técnicas redacionais de uma obra literária.

Perdido em Marte é o que se pode chamar de divertimento que, uma vez encerrado, é quase que imediatamente esquecido. Um grande desperdício de potencial que, espero, se realize em próximo trabalho do autor.

Perdido em Marte (The Martian, EUA – 2011/2013/2014)
Autor: Andy Weir
Editora original: auto-publicado pelo autor em 2011, em áudio-livro pela Podium Publishing em 2013 e pela Crown Publishing em livro impresso, em 2014
Editora no Brasil: Editora Arqueiro
Tradução: Marcello Lino
Capa original: Eric White
Páginas: 336

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