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Crítica | Perdoando Deus, de Clarice Lispector

por Marcelo Sobrinho
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Que reflexões podem surgir de um simples ato cotidiano, como ter a infelicidade de pisar em um rato morto, ruivo, ensanguentado e esmagado no chão da rua, durante um passeio feliz pela orla de Copacabana? Para a maioria das pessoas, o fato não passaria disso, uma mera e asquerosa infelicidade, deixada para trás e destituída de maiores sentidos logo após a sua inoportuna ocorrência. Para a personagem de Clarice Lispector, no breve mas célebre conto Perdoando Deus, o animal morto dispara uma cascata de reflexões, que transcendem o ato em si e desafiam a própria existência da personagem. Eis aqui uma das mais incríveis epifanias de toda a obra clariceana, em que a realidade se revela por entre a banalidade do cotidiano.

Em A Paixão Segundo G.H., temos uma barata morta, esmagada, expelindo seus fluidos. Em Perdoando Deus, mais um animal morto é o mote do conto, mas dessa vez catapultando um caminho bastante distinto em termos de experiência da personagem. É interessante notar inclusive que a escritora brasileira (nascida, na verdade, na Ucrânia) utiliza dois animais considerados repugnantes em ambas as obras para expressar aspectos renegados e ocultados do cotidiano e da própria existência. Aos ratos e às baratas só se oferecem como habitat os esgotos e os bueiros na vida urbana e essa ideia não pode ser perdida de vista se quisermos realmente compreender textos como esse, em que os fluidos vitais expostos metaforizam a própria vida, liquefeita e exposta como objeto de análise e revelação para o leitor.

Clarice, em um de seus melhores e mais celebrados contos, dá forma a um sentimento que não pode ser decodificado. Precisa ser experenciado. Penso que só é possível mergulhar em Perdoando Deus já tendo experimentado o sentimento de contingência da vida. De indiferença da Natureza. Quando a personagem que caminha, tranquila e confiante, sentindo-se como a mãe de Deus (sem nenhum caráter pernóstico, isto é deixado bastante claro na obra) tem a retidão de seus passos arruinada pelo surgimento do rato morto, o que se manifesta é o mundo enquanto indiferença, aleatoriedade e caos. Tal como o sangue exposto em via pública, manchando com seus matizes de desordem a paisagem carioca – amena e prazenteira. Todo o processo que vem em seguida é o da vingança contra um criador que não poupa as suas criaturas do convívio com a aspereza do real. Deus não se comunica com os homens de uma posição excelsa em Clarice. Emerge da sujidade e da desarrumação do mundo terreno. Como suportá-lo enquanto tal? Acima de qualquer coisa, como perdoá-lo por assim se revelar?

Esse é o desafio de uma das mais importantes protagonistas da obra clariceana. Se, no começo, o primeiro ímpeto é o da vingança (contra-golpe imediato), em um segundo, a mulher conseguirá compreender uma questão chave nesta epifania do rato esmagado. A experiência epifânica a faz compreender a sua posição frente à realidade. Perante a mecânica do mundo e a ordem de todas as coisas. Não importa o seu tamanho enquanto indivíduo e criatura, a realidade seguirá sendo incomensuravelmente maior. Intangível e insondável. Revelando sua monumentalidade em pequenas, cruéis e desconcertantes doses. A protagonista, já na conclusão da obra, inicia uma de suas mais interessantes conclusões por: “Eu, sem nem ao menos ter me percorrido toda, escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus”. Aqui ocorre a compreensão do todo. Se o real é o caos inescrutável, também o eu o será. Por isso, a personagem transitará da repugnância para a humildade diante do real.

Perdoando Deus é uma grande oportunidade de compreender que a existência não permite facilitações nem soluções. A personagem termina por perdoar não a Deus, mas a si própria por ter imaginado a vida humana como processo embelezável. A existência segue como um inesgotável escândalo.

Perdoando Deus (Brasil, 1971)
Publicação original: Felicidade Clandestina (Editora Rocco)
Autora: Clarice Lispector
20 páginas

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