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Crítica | Perry Mason – 1X03: Chapter Three

por Ritter Fan
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  • spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios.

Perry Mason se passa em 1930, quase 100 anos no passado, e é absolutamente patético notar como as críticas sociais aplicáveis perfeitamente à época ainda ressonam hoje em dia, estando presentes na realidade do cotidiano de todos nós. Se o circo midiático ao redor do macabro assassinato do bebê do primeiro episódio é lugar comum e algo que se espera da imprensa sanguinária, sensacionalista e facilmente manipulável por aqueles em posição de poder, a abordagem sobre o “papel” da mulher na sociedade é algo que tende a passar despercebido e até encarado com naturalidade.

Emily Dodson é adúltera. Ela mesmo reconhece isso e sente o terrível peso de suas ações, inclusive declarando-se culpada desse “pecado” em pleno tribunal. Não ajuda em nada que seu amante teve envolvimento no sequestro e morte de seu filho, mas é o mero fato de ela ter traído o marido que a coloca sob os holofotes. A decorrência é lógica: se ela fez o que fez com o coitado do marido inocente, então ela obviamente cometeu o hediondo assassinato. A forma como o terceiro episódio de Perry Mason lida com essa questão é kafkiana e realmente desesperadora. Emily está presa e já condenada pela mídia, pelo promotor público Maynard Barnes e por suas próprias colegas de encarceramento. Ela não tem saída e a únicas pessoas que enxergam isso com clareza parecem ser Irmã Alice, em uma postura que aparentemente contraria os manda-chuvas de sua igreja (inclusive sua mãe) e Della Street, assistente de E.B. que é o símbolo da resistência silenciosa.

Se o espectador tinha alguma dúvida sobre o labirinto de Emily, ela é dissipada completamente quando Della a encontra sendo torturada pelos policiais corruptos e assinando o que muito claramente é uma confissão. E a própria mãe adúltera pecadora não tem sequer forças para revidar, para negar o que fez, para minimante encarar com dignidade sua posição. No que diz respeito a ela, o jogo acabou e sua culpa é tamanha que só lhe resta aceitar passivamente tudo o que jogarem em cima dela.

Ah, mas hoje em dia isso não aconteceria! Sim, claro. Hoje em dia em Oz ou em Nárnia, talvez. Muito talvez, aliás… O que se cobra da mulher na sociedade dita moderna não é muito diferente do que se cobrava dela na época da série e deixar de enxergar isso é simplesmente ignorar um dos pontos que Perry Mason vem marcando desde seu início. E é muito interessante como os showrunners não tentam suavizar a questão no que diz respeito ao personagem titular. Não só ele conspirou off camera com E.B. no episódio anterior para vazar as cartas comprometedoras de Emily com seu amante somente para libertar Matthew, como ele é tão cego pela busca pela solução do crime que ele não percebe as consequências negativas imediatas para a mãe presa.

A outra forte crítica social que gira em torno do preconceito racial e que é representada pela forma como Paul Drake é tratado pelos detetives corruptos também ganha bom destaque aqui, com o policial inclusive sofrendo pressão de sua própria esposa, mas não por medo da ameaça nada velada de Ennis, mas sim pela conformidade com o status quo. Em outras palavras, Paul não deve fazer absolutamente nada, curvando-se aos corruptos, não porque sua esposa e seu filho nascituro podem sofrer consequências, mas sim porque ele não deve criar marolas para sua situação social, que é melhor do que a de afro-descendentes que são faxineiros, porteiros etc. Mais uma vez vemos os showrunners dificultando tudo para o espectador. Pelo menos essa pressão errônea que Drake sente o leva ao caminho certo, fazendo uma breve parceria com Mason que coloca o detetive na direção certa, finalmente compreendendo que os bandidos que foram encontrados mortos não estavam sozinhos e não foram mortos por George Gannon.

Mas talvez o ponto alto do episódio tenha sido o diálogo entre Perry Mason, todo sujo e desgrenhado e a Irmã Alice toda angelical e poderosa, recebendo vitaminas (será mesmo?) de forma intravenosa. O palavreado pesado de Mason surpreende os demais presentes, inclusive o médico que cuida de Alice, mas a própria Alice vê valor ali e responde à altura, mas sem desrespeitar o detetive. No contraste absoluto, a conexão foi formada e Tatiana MaslanyMatthew Rhys conseguem brilhar mais ainda em seus respectivos papeis.

No entanto, como se isso não bastasse, ainda somos brindados com um teatro evangélico que leva a Irmã Alice ao que pode ser um transe ou um ataque epiléptico ou algo do gênero que a direção de Tim Van Patten brilhantemente deixa na ambiguidade, mantendo o espectador tão confuso e perdido quanto a plateia ao redor. A promessa de ressurreição do bebê Charlie e  a tomada final com Alice no bote, boiando em mar calmo, aponta para uma narrativa cheia de simbologia e aprofunda o mistério exatamente no momento em que ele começa a ser solucionado.

Perry Mason vem se mostrando surpreendente. Não só o que a série vem entregando é incomum em termos de protagonista, com um homem de moral dúbia (só para usar um eufemismo), pisoteado pela vida e aparentando um mendigo, como a cada episódio da curta minissérie – que já quero que seja a primeira temporada de várias – novos e diferentes elementos são acrescentados à história principal, sem deixar a peteca da crítica social cair sequer por um minuto. Não sei se o bebê Charlie ressuscitará, mas com certeza o nonagenário Perry Mason ganha uma nova vida com o que parece ser mais um grande acerto da HBO.

Perry Mason – 1X03: Chapter Three (EUA, 05 de julho de 2020)
Showrunners: Rolin Jones, Ron Fitzgerald (baseado em personagem criado por Erle Stanley Gardner)
Direção: Tim Van Patten
Roteiro: Rolin Jones, Ron Fitzgerald
Elenco: Matthew Rhys, Shea Whigham, John Lithgow, Juliet Rylance, Nate Corddry, Gayle Rankin, Andrew Howard, Eric Lange, Veronica Falcón, Robert Patrick, Tatiana Maslany, Lili Taylor, Stephen Root, Chris Chalk
Disponibilização no Brasil: HBO
Duração: 60 min.

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