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Crítica | Perry Mason – 2X01: Chapter Nine

A ilusão de justiça.

por Ritter Fan
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  • Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios.

A primeira temporada de Perry Mason foi uma surpresa. E não falo de sua qualidade quase completamente impecável, pois isso já seria de se esperar de uma produção da HBO, mas sim pelo fato de a nova série do personagem criado por Erle Stanley Gardner em 1933 e que protagonizou 82 romances e quatro contos, além de um sem-número de adaptações cinematográficas, televisivas e radiofônicas, abordar a origem do personagem, ou seja, como ele, de um detetive pé-de-chinelo com problemas sérios de alcoolismo, depressão e transtornos pós-traumáticos em razão de sua participação na Primeira Guerra Mundial, tornou-se o advogado esperto que marcou a literatura e o audiovisual.

Mas quem esperava que essa “transformação” fosse um processo de uma temporada só, enganou-se completamente, pois, ao que tudo indica, o segundo ano da série continua esse processo lento e doloroso em que Perry Mason (Matthew Rhys) aprende que a Justiça que ele tanto almeja para seus clientes talvez seja algo inatingível, uma verdadeira ilusão como o promotor público Hamilton Burger (Justin Kirk) diz muito claramente para ele a certa altura do episódio inaugural. Apesar de já ser um homem maduro e experiente na vida, Mason é claramente um sonhador, com um grau elevado de inocência em relação ao seu recente ofício que, temos que lembrar, ele só alcançou por vias menos do que ilibadas. Sofrendo ainda dos mesmos males que o acometiam somado do trauma do suicídio de Emily Dodson (Gayle Rankin), sua primeira cliente, no intervalo entre temporadas, Mason, agora vivendo em um apartamento cuja bagunça muito claramente reflete seu tormento interior, assim como o completo abandono da fazenda de sua família que ele acabou vendendo para a empreendora – e sua amante casual – Lupe Gibbs (Verónica Falcón) refletia seu desespero completo na primeira temporada, trabalha ao lado da sempre segura de si Della Street (Juliet Rylance) em mais casos cíveis do que criminais para manter solvente o escritório da dupla.

Mas sua vida de advogado não lhe traz o prazer que talvez esperávamos que traria. Pelo menos não neste ponto de sua ainda nascedoura carreira, já que poucos meses se passaram desde os eventos anteriores e especialmente considerando que a produção, ao que tudo indica, não tem a menor intenção de usar elipses temporais como varinhas mágicas para mudar completamente o status quo dos personagens. A jornada de Mason e de Street pelos meandros da Justiça será dura se a representação do dono de mercearia Sunny Gryce (Sean Astin sensacionalmente bem escalado contra o tipo de personagem que costuma viver) em um caso envolvendo propriedade intelectual é alguma indicação. No lugar de um acordo em prol da tão almejada justiça, Mason e Street são obrigados a espremer o humilde réu até deixá-lo sem seu ganha-pão, em um exemplo não tão incomum assim em que o Sistema Judiciário destrói, no lugar de reparar.

E tudo o que escrevi acima é apenas um aspecto do episódio em questão, ainda que definitivamente o mais importante, claro. O ponto é que, inevitavelmente, o roteiro escrito pelos novos showrunners Jack Amiel e Michael Begler – a dupla responsável pela formidável The Knick – carrega o ônus de ser um início de temporada, mas, diferente de muitas outras que vemos por aí, o texto não entrega um tabuleiro didaticamente arrumado para o espectador sentir-se confortável. Nem mesmo o tempo entre temporadas é levado em consideração, com uma carga maior de “lembretes” do que ocorreu antes. Perry Mason não é, sob nenhum aspecto, uma série mastigadinha, que segue os tropos comuns de outras séries por aí, até mesmo da própria HBO recente que, mesmo com grandes sucessos de público, vem deixando a desejar nesse quesito de real complexidade.

O que acompanhamos, portanto, para além de um Perry Mason ainda tentando lutar para sair do poço sem fundo de uma vida destroçada pela guerra e para além de uma Della Street não só carregando o escritório nas costas, como, também, tentando encontrar novos rumos amorosos para sua vida, é um episódio que esboça o que ainda está por vir. Seguimos o milionário filhinho de papai Brooks McCutcheon (Tommy Dewey) capitaneando atos ilegais, posando de preocupado com os pobres e, lateralmente, desobedecendo as ordens de seu pai (Paul Raci), somente para ele ser assassinado ao final, deixando um enorme ponto de interrogação sobre a direção da série. Vemos Pete Strickland (Shea Whigham), a pedido de Mason, arrumando um trabalho de detetive para Paul Drake (Chris Chalk) em nome do promotor, o que recoloca os dois personagens no jogo, mas sem ainda muita direção, assim como ganhamos uma ponta do corrupto Detetive Holcomb (Eric Lange), também da temporada anterior, como o braço forte de Brooks e potencialmente quem atirou no próprio chefe (será?). Como eu disse, é tudo um esboço ainda bem enevoado do caso central em que Mason e Street serão envolvidos, ainda que uma coisa seja bem já bem evidente: o caminho escolhido pelos novos showrunners é diametralmente oposto ao da temporada inaugural, em que a vítima era um bebê. Claro que ricaços estão envolvidos e é claro que a cidade sofrerá abalos, mas vitimar um herdeiro de um império e usar isso como ponta de lança para Perry Mason mostrar suas habilidades é uma aposta sem dúvida muito interessante, ainda que chegue a ser um pouco inquietante imaginar como a narrativa ainda muito aberta encontrará seu norte.

Talvez seja chover no molhado dizer que a série continua impressionante no quesito direção de arte, mas não consigo resistir. Dos cenários a figurinos, passando por maquiagem, cabelo e fotografia, tudo funciona à perfeição aqui, com a direção do brasileiro Fernando Coimbra (do ótimo O Lobo Atrás da Porta) sabendo lidar com precisão com os diversos núcleos e com o enfoque dado aos personagens centrais. Se o silêncio inicial de Sean Astin nos deixa ao lado do personagem, quando ele finalmente dialoga com Mason e Street, somos jogados imediatamente para o lado oposto, surpresos, com o mesmo acontecendo com a sequência do pesadelo de Mason com Dodson e o subsequente acidente de moto seguindo pelo mesmo caminho desnorteador e inesperado, que exige que juntemos rapidamente as peças para enxergar o que está sendo montado.

Perry Mason retorna sem pedir desculpas por estar voltando, sem fazer concessões pela compreensível demora da produção e, melhor ainda, sem transformar o fascinante protagonista vivido por  um Matthew Rhys inspiradíssimo em um superadvogado da noite para o dia. Ele ainda é o homem falho, torturado e complexo que conhecemos em 2020 vivendo em uma Los Angeles dos anos 30 que continua sendo o antro de corrupção, sujeira e morte a que fomos apresentados. A Justiça pode até mesmo ser uma mera ilusão, mas o retorno da série certamente não é e é um alívio que ainda haja espaço na tumultuada e competitiva grade televisiva para uma obra que não parece se preocupar com o quanto ela é comentada semanalmente por aí.

Perry Mason – 2X01: Chapter Nine (EUA, 06 de março de 2023)
Showrunners: Jack Amiel, Michael Begler (baseado em personagem criado por Erle Stanley Gardner)
Direção: Fernando Coimbra
Roteiro: Jack Amiel, Michael Begler
Elenco: Matthew Rhys, Juliet Rylance, Chris Chalk, Shea Whigham, Justin Kirk, Diarra Kilpatrick, Verónica Falcón, Tommy Dewey, Paul Raci, Jee Young Han, Sean Astin, Matt Bush, Gayle Rankin, Eric Lange
Duração: 56 min.

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