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Crítica | Perseguidor Implacável (1971)

por Ritter Fan
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O final da sequência em que o detetive Harry Callahan, mastigando seu cachorro-quente e empunhando sua Magnum .44, impede um assalto a um banco marca o exato momento do nascimento do arquétipo do policial durão que se fixaria ao longo da década de 70, chegaria ao auge do exagero na década de 80 e que continuaria sendo usado, de uma maneira ou de outra, até os dias de hoje. Dirty Harry é, possivelmente, o “resumo” do tipo de personagem vivido por Clint Eastwood até aquele momento em sua carreira – especialmente na aclamada Trilogia dos Dólares -, mas com um polimento que empresta à sua criação um verniz atemporal, mas cujo significado original, que será abordado mais adiante, há muito se perdeu.

E, que fique claro, não quero dizer, com isso, que Eastwood “inventou” a persona de policial durão. Durante as décadas anteriores, notadamente com os filmes noir e obras clássicas como Chagas de Fogo, esse “tipo” de personagem foi sendo moldado e aperfeiçoado. Harry, “o sujo”, é apenas o ponto alto dessa evolução e Perseguidor Implacável (tipicamente um daqueles títulos que simplesmente tinha que ter ficado no original, mesmo em português…) é o sarrafo pelo qual todas as produções posteriores – inclusive suas quatro continuações – seriam medidas e poucas vezes alcançada.

O roteiro, apesar de ter passado por um grande número de revisões, é simples e objetivo. Um serial killer está à solta em São Francisco e cabe a Callahan (Eastwood) investigá-lo e pará-lo. Essa tênue história, porém, é apenas a superfície do que os roteiristas Harry Julian Fink, Rita M. Fink e Dean Riesner querem efetivamente discutir. O pano de fundo, aqui, é o eterno conflito entre o método investigativo de autoridades em geral e o direito das vítimas em contraste com o que poderia ser resumido como o “direito dos bandidos”. Em outras palavras, Perseguidor Implacável faz a pergunta clássica: será que os fins justificam os meios?

Mas o melhor é que não há uma resposta. Ou, pelo menos, não há didatismo exagerado que nos carrega no colo em direção a um ou outra posição. Sim, é inevitável simpatizarmos com o protagonista, já que ele é vivido por Clint Eastwood, e é igualmente inevitável odiar o assassino tresloucado muito bem interpretado por Andy Robinson. Mas a resposta não está necessariamente nesses dois extremos, mas sim, como sempre, nas entrelinhas, nos tons de cinza. Por isso é incrivelmente inocente e reducionista simplesmente carimbar o selo de “fascista” em Perseguidor Implacável como muitos críticos fizeram à época de seu lançamento e que muita gente ainda faz hoje em dia, especialmente agora que a expressão em si, com significados completamente equivocados e divorciados de seu significado histórico, “caiu na boca do povo”. Não, Perseguidor Implacável não é um “filme fascista”, a não ser que o espectador considere que filmes que mostram personagens sendo violentos para conseguir seus objetivos são sempre fascistas.

Tachar o filme assim e fugir do enfrentamento da questão não serve para nada. Callahan tem um dilema: ele precisa salvar um jovem que está prestes a morrer e, para isso, precisa de uma confissão do bandido sobre onde ela está escondida. O que fazer? Tratá-lo dentro dos rigores da lei ou fazer o que tiver que ser feito para conseguir uma resposta? Coloquem-se no lugar de Harry. Ou, melhor ainda, coloquem-se no lugar da mãe ou pai da vítima. Sua resposta muda se passarmos da teoria para a prática?

Agora vejam o outro lado da moeda. Se a tortura (vamos deixar os eufemismos de lado) pode ser algo aceito, o que impede que policiais como Harry façam uso descontrolado da técnica? O que impede que qualquer um simplesmente faça o que for necessário para resolver pendengas? Voltaríamos para um estado de barbárie, não é mesmo? A lei e a ordem seriam conceitos há muito esquecidos.

Que lado está certo?

A pergunta é retórica. Não há lados e não há certo e errado. Escrever do conforto de minha cadeira é muito fácil. Imaginar-se como um policial que tem que ir todo o dia para o fronte de guerra lidar com as maiores atrocidades (e Harry é de São Francisco, cidade pacata se comparada com, por exemplo, o Rio de Janeiro) é extremamente difícil. Em outras palavras, ditar regras é muito mais fácil do que colocá-las em prática, especialmente considerando que quem dita as regras não tem o menor conhecimento prático – via de regra – do dia-a-dia em que elas terão que ser aplicadas.

Repararam como Perseguidor Implacável é um filme relevantíssimo ainda – e talvez especialmente – nos dias de hoje? Repararam como aplaudir Harry e suas ações têm um preço, mas que também querer o exato oposto pode ter um preço maior ainda? A questão é complexa e a bola levantada pelo roteiro da trinca criadora é arremessada de forma enviesada, pegando o espectador de calças curtas.

No entanto, há mais para observar no filme. E o que mais chama a atenção é ritmo lento, cadenciado da “perseguição implacável” de Harry ao assassino Scorpio, que foi inspirado no assassino do Zodíaco e que estava sendo efetivamente investigado pela década de 70 por seus crimes em São Francisco (a produção chegou a ser acusada, com uma certa razão, de se aproveitar da “fama” momentânea do criminoso para alavancar-se). Nada de grandes sequências de ação. O único momento de verdadeiro destaque é o assalto ao banco que mencionei no início da crítica, que tem a função de nos mostrar o protagonista em ação antes de seu mergulho no submundo da cidade atrás do serial killer.

Mesmo assim, e provavelmente em razão das várias versões do roteiro que circularam pela produtora, algumas elipses temporais ficam mal resolvidas e o modus operandi do criminoso parece aleatório demais, com um lado investigativo um tanto quanto simplório, sem maiores detalhes. Talvez a calma que permeia a fita até seus dois terços iniciais tenha obrigado Don Siegel, que Eastwood fez questão que dirigisse o filme, a tomar alguns atalhos na mesa de edição que aceleram a narrativa talvez um pouco mais do que o necessário na medida em que o confronto final se aproxima.

Mas a fotografia de Bruce Surtees é certeira ao emprestar uma atmosfera suja à bela São Francisco. De um lado, Siegel evita transformar seu filme em um cartão postal do local e, do outro, a fotografia noturna propositalmente muito escura e que evita os truques comuns do ofício em situações como essa, como superfícies reflexivas, normalmente molhadas, nos arremessa diretamente ao submundo com luzes e sombras duras e silhuetas bem trabalhadas. Quando vemos o grande símbolo da cidade, a Golden Gate, ela está diretamente relacionada com morte e dor, em uma escolha inteligente que impede que o espectador perca seu foco e as discussões do filme se tornem difusas.

Outro elemento da narrativa que merece destaque é a trilha sonora do grande Lalo Schifrin, que usa percussão para ritmar a ação e colocar nossa expectativa em xeque, além de um coral quase fantasmagórico para pontuar o mundo do crime em que somos colocados. E é muito interessante ver, também, como Don Siegel escolhe uma sincronização econômica, usando tanto os acordes de Schifrin como o silêncio como armas para pontuar a ação e os momentos mais parados. Há, claro, um ar setentista permeando o trabalho de Schifrin, mas sua música consegue sobreviver ao tempo e ganha vida em Perseguidor Implacável.

Clint Eastwood, como Dirty Harry, sedimenta de forma definitiva sua persona clássica nas telonas ao mesmo tempo que nos apresenta uma discussão ainda extremamente atual e importante. Seu policial durão, que mastiga cachorros-quentes enquanto fuzila bandidos e que faz o que tiver que ser feito para conseguir seus objetivos é fascinante e quase mitológico. Um grande passo na carreira de um grande nome de Hollywood.

Perseguidor Implacável (Dirty Harry, EUA – 1971)
Diretor: Don Siegel
Roteiro: Harry Julian Fink, Rita M. Fink, Dean Riesner
Elenco: Clint Eastwood, Harry Guardino, Reni Santoni, John Vernon, Andrew Robinson, John Larch, John Mitchum, Mae Mercer, Lyn Edgington, Ruth Kobart
Duração: 102 min.

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