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Crítica | Persuasão (2022)

Ou... o filme que se contradiz.

por Gabriel Zupiroli
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Desde suas primeiras cenas, Persuasão já estabelece com firmeza todos os caminhos que pretende trilhar. Seja na alternância dos créditos iniciais com planos íntimos de um casal apaixonado, nos campos, ou na inserção direta do diálogo da personagem com o espectador, compreende-se desde os minutos iniciais de que se trata de uma história amorosa, sobre as liberdades do sentimento individual, entregue, em numerosos momentos, à comédia. E talvez esse seja o maior feito da obra: não há dúvidas do que será visto em tela. Há uma clareza de aspecto muito higienizante no estabelecimento de seus paradigmas. E, de certa forma, é isso que será visto em tela por mais de 90 minutos, sem qualquer titubeação.

A adaptação do romance homônimo de Jane Austen se debruça sobre a vida de uma personagem pertencente à nobreza inglesa decadente, cujo antigo amor por um marinheiro de baixo escalão social fora interrompido justamente por suas diferenças sociais. À sombra de seu retorno, agora sob o estigma do glorioso capitão, as chaves do romance estão postas sobre alguns lugares-comuns já bem estabelecidos entre obras do gênero: a dúvida entre diferentes amores, o confronto entre sentimentos passados e suas insurgências presentes, a abdicação do próprio desejo perante a estratificação. Nesse sentido, Persuasão corrobora com o estabelecimento inicial em encenar um filme nos moldes tradicionais, conjurando em tela todas as elaborações formais em prol dos sentimentos esperados por aquele que assiste. Entretanto, trata-se de uma obra que, em meio à construção deste espaço delimitado, insiste em constantemente evidenciar uma espécie de modernização em relação a seu objeto diante do extra-filme que funciona como chave de recepção – o que, por um lado, até funciona na estilização proposta, e por outro acaba por constantemente sublocar a força-motriz discursiva a uma posição inferiorizada em relação a esses dispositivos.

Assim, há certa inserção de elementos que, de maneira similar aos já citados lugares-comuns, também é estabelecida desde o princípio: a quebra da “quarta parede” – à maneira que ficou muito popular após Fleabag – como dispositivo de facilitação cômica entre a interioridade da personagem e o espectador; a reformulação das características da estratificação social – que, ainda assim, nunca questiona de fato tal elaboração; e, talvez, o flerte com uma encenação falsamente descompromissada, que se apoia numa montagem que, ao mesmo tempo em que se codifica nos planos “tradicionais”, também procura uma aceleração previamente antagonista ao andamento de um romance dramático. Até aí, nenhum problema. A reformulação de uma obra anterior através da tradução adaptativa aos tempos “atuais” é sempre bem-vinda. Nesse sentido, esses elementos funcionam relativamente bem para estabelecer um clima de romance leve, cômico e, simultaneamente, apaixonado.

A problemática de tal forma de se montar um filme reside no fato de que, ao final, toda essa transformação se perde em meio a um reforço dos discursos precedentes. Cria-se, de certa forma, um paradoxo entre elaboração formal e tratamento discursivo. Por mais que, num paradigma de encenação “tradicional”, o drama exista e tenha espaço para delimitar seus apelos, o que sobra dos mais de 90 minutos de exibição é uma espécie de gosto amargo quando notamos que, no fim, toda aquela subversão se perde em um conservadorismo de discurso. Independentemente da replicação histórica, da condução dramática pela organização narrativa dos planos, o drama – cujo apelo genuíno aparece, até, em bons momentos – sucumbe a uma espécie de conservadorismo da imagem. Neste jogo de tendências opostas – e sua tentativa de organizar essa contrariedade -, reside, ao fim, um movimento de regresso a um passado estabelecido.

Pode-se argumentar, talvez, que certa “fidelidade” esteja em jogo para essa concretização. À parte as discussões acerca do termo, se essa ideia mesma pudesse ser aplicada, a primeira parte da equação (a modernização dos dispositivos narrativos) se demonstraria sem devido lugar. Nesse sentido, o jogo formal colocado em tela por Carrie Cracknell, diretora do filme, aparece estruturado em uma dualidade frágil. Compreendemos as transformações em tela, potencialmente organizadas, assim como o apelo da formulação dramática. Entretanto, considerando a obra como um todo, em que conexão entre início e fim existe, um movimento de contrariedade aparece de maneira gritante.

O que sobra, de certa forma, é um romance curioso. Pela capacidade de engendrar seus mecanismos, assim como pela coragem de articular algo devidamente localizado numa “tradição” a perspectivas contemporâneas. E justamente por isso, Persuasão não é um filme ruim. Entretanto, é como se rondasse a obra ainda uma falta de certeza dos caminhos pelos quais seguir. À parte tudo isso, seu lugar é aquele no meio – o que talvez seja ainda pior na escala do gosto.

Persuasão (Persuasion) – Inglaterra, EUA, 2022
Direção: Carrie Cracknell
Roteiro: Ronald Bass, Alice Victoria Winslow
Elenco: Dakota Johnson, Cosmo Jarvis, Henry Golding, Richard E. Grant, Nikki Amuka-Bird, Ben Bailey-Smith, Mia McKenna-Bruce, Izuka Hoyle, Nia Towle, Edward Bluemel, Lydia Rose Bewley
Duração: 107min.

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