A trajetória de Ney Matogrosso sempre foi marcada por rupturas. Em Pescador de Pérolas, lançado em 1987, essa vocação para o inesperado se manifesta pela escolha deliberada de silenciar o excesso. O artista, então sinônimo de teatralidade e exuberância, opta por uma abordagem minimalista, quase contemplativa, revelando uma faceta interpretativa que até então permanecia em segundo plano. O disco nasce do espetáculo homônimo, concebido dentro do projeto Luz do Solo, e gravado ao vivo no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. A proposta era clara: deslocar o foco da imagem para o som, da performance para a escuta. Essa mudança reflete na formação instrumental escolhida. Ney se cerca de músicos de excelência: Arthur Moreira Lima ao piano, Paulo Moura nos saxofones alto e soprano, Rafael Rabello no violão e Chacal na percussão. O conjunto, de caráter camerístico, privilegia timbres acústicos e estrutura instrumental concisa, com destaque para a interação entre piano e voz — uma relação que estrutura boa parte das faixas. A direção musical, compartilhada entre Moreira Lima, Moura e Rabello, revela um cuidado com a arquitetura sonora, evitando floreios e apostando na expressividade contida.
A abertura com O Mundo É Um Moinho traz uma interpretação seca, sem vibrato excessivo, com fraseado espaçado e controle respiratório exemplar. Ney evita sentimentalismos fáceis, e o piano de Arthur Moreira Lima constrói uma harmonia espaçada e transparente, reforçando a melancolia estrutural da canção. Em Segredo, o saxofone de Paulo Moura atua como contraponto melódico, e a percussão pontua discretamente os momentos de suspensão harmônica. A voz de Ney se mantém em registro médio, com articulação clara e dinâmica controlada.
Tristeza do Jeca é abordada com reverência, sem caricatura. A interpretação valoriza a simplicidade melódica da canção, com uso comedido de vibrato e timbre limpo. Em Dora, de Caymmi, o violão de Rabello e o piano criam uma textura semi-contrapontística, e Ney adota um tom meditativo, reforçando o caráter oceânico da composição. A Lua Girou, adaptação de Milton Nascimento de um tema folclórico, ganha contornos ritualísticos: a percussão estabelece uma pulsação cíclica, e Ney canta em registro quase falado, criando uma atmosfera de encantamento.
A ária Mi Par D’Udir Ancora, da ópera Os Pecadores de Pérolas (Les Pêcheurs de Perles), de Bizet, é interpretada com acento lírico convincente. Ney domina a emissão em italiano com clareza fonética e controle técnico, navegando por intervalos amplos com precisão e domínio vocal. Quem Sabe?, de Carlos Gomes, funciona como miniatura romântica, com arranjo para piano que sugere valsas dissolvidas e interpretação vocal suave, sem grandiloquência. As faixas em castelhano — Dos Cruces, Alma Llanera e Besame Mucho — revelam versatilidade idiomática. Ney adapta sua dicção com naturalidade, e o piano intercala acordes em harmonia espaçada e delicada. Em Besame Mucho, a interpretação é elegante, embora não alcance o impacto emocional que a canção permite. Da Cor do Pecado é funcional no conjunto, mas menos memorável individualmente. A linha melódica é mantida sem alterações significativas, e o arranjo assume papel de sustentação do timbre.
O encerramento, com Ary Barroso — Rio de Janeiro (Isto É o Meu Brasil) e Aquarela do Brasil —, introduz um elemento de brasilidade exuberante. A percussão ganha corpo e o saxofone assume papel de destaque. Ney mantém a sobriedade interpretativa, evitando o tom ufanista que poderia comprometer a coerência estética do disco. Visualmente, o espetáculo reforça a proposta de contenção: Ney se apresenta de rosto limpo, sem maquiagem, trajando terno italiano e camisa branca. A iluminação discreta e o cenário despojado contribuem para uma atmosfera de concentração, onde cada nota parece surgir de um espaço de escuta compartilhada.
Tecnicamente, Pescador de Pérolas é um disco meticulosamente articulado. O repertório forma uma estrutura que articula gêneros diversos com unidade estética, como canção popular/folclórica, ária e música latino-americana. A mixagem garante equilíbrio entre as sonoridades, com foco na inteligibilidade vocal e na densidade harmônica. O álbum não exibe os riscos da improvisação livre, mas aposta na precisão e no refinamento como forma de expressão. O que permanece é a sensação de ter acompanhado um mergulho profundo na canção brasileira e latino-americana, guiado por um intérprete que escolheu o silêncio como forma de potência. Pescador de Pérolas se insinua e se revela aos poucos, como as pérolas que dão nome à obra. E nesse gesto de recolhimento, Ney Matogrosso reafirma sua capacidade de surpreender, não pelo excesso, mas pela elegância da contenção.
Aumenta!: Aquarela do Brasil
Diminui!: —
Pescador de Pérolas
Artista: Ney Matogrosso
País: Brasil
Lançamento: 1987
Gravadora: Kuarup Discos
Estilo: Música Clássica, MPB
Duração: 45 min.