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Crítica | Pinóquio por Guillermo del Toro (2022)

O que é a vida sem a morte?

por Ritter Fan
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A promessa de uma adaptação de Pinóquio em stop-motion por Guillermo del Toro é um tríptico absolutamente irresistível que basicamente fez da animação uma das obras audiovisuais que mais esperava desde a primeira década do século XXI, quando ela foi pela primeira vez anunciada pelo cineasta. Foram muitos anos – algo como 13 ou 14 – para que finalmente o longa-metragem fosse bancado e chegasse às telinhas pelo Netflix, com distribuição limitada nos cinemas algum tempo antes, o que mostra o quanto o streaming tem o poder de materializar obras que, de outra forma, jamais chegariam à luz do dia.

Co-dirigido por Mark Gustafson, especialista nesta imbatível técnica de animação que estreia na direção de longas, a criação original de Carlo Collodi ganha uma verdadeira adaptação, a primeira desde 2001 (lembram-se de A.I. – Inteligência Artificial?) a realmente abraçar o material base e criar uma história própria que mantém o espírito do clássico de 1883, mas que não tem receio algum de expandir tremendamente a narrativa e convertê-la em um conto sombrio, passado na Itália fascista de Mussolini (fazendo uma espécie de Trilogia Antifascista de Del Toro, juntamente com A Espinha do Diabo e O Labirinto do Fauno) e alterando sobremaneira os eventos ao redor dos personagens, expandindo o papel de uns, criando outros, eliminando alguns e amalgamando vários. É uma releitura completa, mas surpreendentemente fiel no sentido macro da expressão, que entrega um Pinóquio nunca antes visto que rivaliza – com proposta completamente diferente, claro – a adaptação clássica da Disney, de 1940.

Usando como inspiração visual as ilustrações feitas por Gris Grimly (nom de plume de Steven Soenksen) para uma edição de 2002 da obra de Collodi, o famoso boneco de madeira, nesta sua nova e fascinante versão, é criado quando Gepetto (voz de David Bradley, o Argus Filch da série cinematográfica Harry Potter), em uma bebedeira ocasionada pela dor da perda de seu filho Carlo (Gregory Mann), corta o pinheiro que plantara próximo ao seu túmulo e esculpe uma marionete assimétrica, repleta de falhas como um escultor em estupor alcoólico provavelmente faria. Nasce, então, pela magia de uma fada bondosa (Tilda Swinton), um menino de madeira logo batizado de Pinóquio que é tutoreado pelo narrador do longa, o grilo falante e muito viajado Sebastian J. Cricket (Ewan McGregor), que passa a morar literalmente no coração do boneco.

E o protagonista, repleto de defeitos, talvez até feio, com apenas uma orelha, cheio de remendos e crivado de pregos nas costas – que eu vejo como uma forma de Del Toro que aproximá-lo ainda mais da figura de Jesus Cristo de madeira que Gepetto esculpira anos antes – é exatamente o que se espera de uma obra do diretor mexicano, algo que é amplificado pela forma como seu próprio pai adotivo reage quando o garoto o desobedece, criando uma chaga na relação entre eles. As aventuras que se seguem transformam Pinóquio na estrutura clássica de uma obra de amadurecimento, mas o roteiro faz bem mais do que apenas isso e estabelece o protagonista não como um personagem com um fim em si mesmo, mas sim como um agente de transformação em relação a todos ao seu redor, incluindo Gepetto, o grilo Sebastian, o macaco Spazzatura (Cate Blanchett em uma “voz surpresa”), assistente do vilanesco Conde Volpe (Christoph Waltz), por sua vez a amálgama da raposa e de Mangiafuoco da obra original e o menino Candlewick (Finn Wolfhard), filho do Podestà (Ron Perlman), representando o governo fascista de Mussolini e funcionando como o Cocheiro de Collodi. Até mesmo a versão da Fada Azul e sua irmã quimérica Morte (também Swinton) são afetadas por Pinóquio ao longo da película.

Del Toro e Gustafson convertem a narrativa de um boneco de madeira que queria ser um menino de verdade em uma história sobre a fragilidade da vida e o papel da morte neste mesmo contexto, sobre o valor dos laços familiares e como eles são falhos e difíceis, muito distantes das versões de contos de fadas que o audiovisual normalmente privilegia. É por isso que eu digo e repito que este novo Pinóquio usa a obra clássica como uma tela sobre a qual é pintada uma história que nos deixa entrever a intenção original, mas que acrescenta diversas outras camadas que particularizam o filme e convertem-no em uma criação própria e única que consegue desafiar o espectador ainda mais do que boa parte das diversas adaptações passadas.

Mas nada disso teria valor não fosse o amor laboral infinito que é visivelmente derramado em cada quadro desta esplendorosa obra em stop-motion. Sinceramente, não tenho nenhum comentário técnico frio e distante para tecer sobre o que Del Toro, Gustafson e equipe fizeram aqui neste filme que consegue alcançar os imortais da técnica como Ray Harryhausen e Henry Sellick O que eu tenho são, apenas, superlativos, pois o design de produção é de outro mundo, os bonecos animados são tão perfeitos que é fácil esquecer que é stop-motion, a trilha sonora e as canções (o filme não é exatamente musical como estão dizendo por aí, vale notar) de Alexandre Desplat capturam com perfeição o clima por vezes sombrio, outras vezes terno e emocionante requerido pela abordagem de Del Toro e o elenco está absolutamente incrível no trabalho de vozes, valendo especial destaque para o jovem Mann como Carlo e Pinóquio, o veterano Bradley como Gepetto, McGregor como o grilo e, claro, Waltz como Volpe.

O novo Pinóquio – nada menos do que o terceiro só de 2022 e de longe, muito longe, mas muito longe mesmo, o melhor – é um triunfo do stop-motion em especial e da animação em geral e uma aula magna de como se adaptar material base já extensamente adaptado. Guillermo del Toro e sua visão muito particular e sempre extraordinária de tudo o que pega para fazer acerta mais uma vez e entrega outra grande obra de sua relativamente curta filmografia. E Pinóquio, depois de 21 anos, ganha sua terceira releitura definitiva no audiovisual.

Pinóquio por Guillermo del Toro (Guillermo del Toro’s Pinocchio – EUA/México/França, 09 de dezembro de 2022)
Direção: Guillermo del Toro, Mark Gustafson
Roteiro: Guillermo del Toro, Patrick McHale (baseado em história de Guillermo del Toro e Matthew Robbins e obra de Carlo Collodi)
Elenco: Gregory Mann, Ewan McGregor, David Bradley, Christoph Waltz, Tilda Swinton, Ron Perlman, Finn Wolfhard, Cate Blanchett, Burn Gorman, John Turturro, Tim Blake Nelson, Tom Kenny
Duração: 117 min.

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