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Crítica | Placas Tectônicas

por Luiz Santiago
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estrelas 4,5

Placas Tectônicas (originalmente publicada em 2013) é, no sentido mais literal possível da palavra, uma graphic novel. Escrita e desenhada pela artista francesa Margaux Motin — no mercado desde 2009, mas este é o seu primeiro trabalho publicado no Brasil –, a obra é uma biografia ilustrada que mistura o estilo narrativo da charge, das tirinhas de jornal e da exposição livre de desenhos por página, sem a delimitação organizacional dos quadrinhos (entenda que me refiro, literalmente, aos quadros e retângulos nos quais as HQs comuns são diagramadas) e sem a obrigatoriedade dos balões, dando plena liberdade para o leitor viajar sem “amarras” com a protagonista nessa jornada que vai de um divórcio até um dos momentos mais doces da história, que não vou revelar aqui.

Sabendo dessa premissa, o leitor entende que está diante de algo mais que especial, tanto em texto quanto em imagem, ou seja, uma história real contada em quadrinhos mas em uma estrutura de romance [ilustrado], com mescla de modelos de plataformas para desenhos e inserção de fotografias com desenhos sobrepostos, todos eles com traços finos, ambientações simples e precioso trabalho de coloração. Não bastasse essa inventividade expressada de maneira quase minimalista, a obra nos traz frequentes ícones de cultura pop/nerd ou do cotidiano do norte da França e da Espanha (País Basco, mais precisamente), seja nas camisetas, nas ações e viagens da protagonista (a própria Margaux) e no roteiro extremamente desbocado e hilário.

Ganhando o público pela identificação e verossimilhança na adaptação de cenas da vida real, Motin já anda metade do caminho para fazer o seu texto funcionar. A outra metade ela consegue pelo conteúdo variado, falando de sexo, trabalho, esportes, maternidade, feminismo, entretenimento, embriaguez, crise existencial, planos para o futuro, tristeza, alegria, doença…  e também por retratar esse conteúdo em momentos diferentes de sua vida, tornando a narrativa plural e interessante porque desde cedo gera no leitor a curiosidade de saber qual será o próximo lugar a ser visitado ou a próxima situação com a filhinha da artista, suas amigas, seu namorado ou sua mente maluca.

Há uma pequena rusga nessa brevidade das histórias e nos saltos temporais e espaciais que vemos na obra, configurando o pequeno e único ponto negativo do volume. Não se trata de algo que atrapalhe a concentração, destrua a proposta ou minimize a qualidade dos micro-contos, mas certamente causa incômodo no leitor. A reta final do livro é a que mais possui esse tipo de pulo de conceitos, mas, novamente, a sensação que temos aí não faz a obra cair muito de qualidade, ela só perde um pouco por algo que se configura uma armadilha de roteiro, posto que, dentro dessa proposta, ela precisaria escolher distanciar bastante alguns eventos — ou isso, ou fazer apenas tirinhas –, então, trata-se de escolher o melhor veneno. E bem… quem dera todos os venenos dos quadrinhos acabassem tendo o mesmo nível de qualidade final de Placas Tectônicas.

No fim, o livro-quadrinho acaba sendo uma obra de poesia urbana. E quando digo isso, eu não estou exagerando. Existem momentos, especialmente no final, em que as escolhas que a artista faz, a forma como lida com mais um grande problema em sua vida e como representa isso em desenhos (prestem bastante atenção nas “nuvens de cor” que acompanham muitas cenas da obra. Elas indicam um estado de espírito interno!) não trai a Margaux insana que conhecemos desde o início do divórcio, na primeira página do livro, mas aponta para algo que podemos chamar de maturidade. E há tanta delicadeza, humor e identificação nossa em jogo que será impossível não ter o coração aquecido após a última página.

Placas Tectônicas é um quadrinho sobre a vida, sobre crescer quando já se é crescido, sobre responsabilidades, sobre ser humano. Margaux Motin se desnuda para o púbico, de corpo e alma, mas não com um sentimento de derrotismo, lições de moral chatas e doenças de politicamente correto. Ela é qualquer um de nós em momento de crise. Todo aquele que já tenha tido suas placas tectônicas separadas pela deriva continental de uma vida cheia de “surpresas de adulto” vai entender.

Placas Tectônicas (La Tectonique des plaques) — França, 2013
Publicação no Brasil: Editora Nemo, 2016
Roteiro: Margaux Motin
Arte: Margaux Motin
Tradução: Fernando Scheibe
256 páginas

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