Quase simultaneamente ao começo de Better Call Saul, prelúdio-derivado de Breaking Bad, Vince Gilligan lançou a pouco lembrada Battle Creek pelo canal de televisão americano CBS que acabou tendo o mesmo destino da primeira série de TV que ele criou, The Lone Gunmen, derivado de Arquivo X: ela acabou com apenas 13 episódios. Um ano antes do começo de Breaking Bad, outra série de Gilligan – A.M.P.E.D. -, sobre uma epidemia que causa mutações genéticas, foi produzida, mas não saiu do estágio do piloto. Começo minhas críticas dos dois primeiros episódios de Pluribus – ou Plur1bus como usado na série e no material de divulgação – com comentários sobre o currículo de Gilligan, para lembrar que mesmo as mais bem-sucedidas obras na TV podem vir cercadas de fracassos e a nova criação dele, que foi precedida de uma guerra de lances para aquisição em que o Apple TV saiu vitorioso, é o primeiro real teste de Gilligan em sua fase pós-BB/BCS.
Vamos às críticas dos episódios, com a primeira tendo sido escrita antes da conferência do segundo para evitar “contaminação”, mas acho que já vale um aviso aqui: não as leiam, ou, pelo menos, não as leiam antes de assistir os episódios. Não ofereço spoilers na primeira crítica, mas, mesmo assim, sugiro a experiência no estado mais puro da ignorância completa.
1X01
Nós Somos Nós

A palavra latina pluribus pode ser traduzida para o português como “de todos” ou “entre todos”, mas ela é mais conhecida como parte da expressão e pluribus unum, que significa “de todos, um”, famosamente usada pelos EUA como seu lema nacional, comentando as 13 Colônias que se tornaram um país e fazendo parte do verso do chamado Grande Selo dos Estados Unidos desde 1776 e, bem depois, aparecendo também em sua moeda. O que pouca gente sabe, porém, é que a origem da expressão é bem mais prosaica do que se espera, já que ela provavelmente foi pinçada do poema Moretum, atribuído ao poeta romano Virgílio, autor da Eneida, em que um fazendeiro, ao lado de sua escravizada africana, faz sua própria comida, com e pluribus unum sendo empregado para dizer que os ingredientes do molho pesto (ou algo bem parecido) devem ser moídos até que “cada planta perde as próprias forças, e uma só cor se faz de muitas“. Entre o uso nobre e até pretensioso da expressão como parte dos alicerces de um país em seu nascimento ou o uso rasteiro como parte de uma mera receita culinária, o título escolhido por Vince Gilligan para sua nova série carrega consigo essa dicotomia misteriosa que é visualmente expressa também pelo uso do numeral “1” substituindo a letra “i”.
E, se o título habilmente descreve a premissa – que não abordarei aqui para fugir de spoilers, o que naturalmente limita essa primeira crítica -, ele descreve melhor ainda o que Nós Somos Nós (uma tradução que corrige e tira todo o sabor do título original We Is Us, ou seja, Nós É Nós) efetivamente é: uma hábil mistura de gêneros que resulta em um conjunto improvavelmente coeso e, diria, delicioso como o molho de Virgílio. Entre um enigmático começo de ficção científica em que um misterioso sinal extraterrestre é captado por antenas de um observatório (lembrando muito Contato) que é seguido por sequências em um laboratório povoado por cientistas com roupas de proteção (impossível não lembrar do próprio Breaking Bad) em uma pegada de filme de horror que, ato contínuo, servem de temperos só conhecidos pelo espectador – e mesmo assim não completamente – para o drama da bem-sucedida escritora Carol Sturka (Rhea Seehorn) que, porém, odeia o que escreve e esconde seu namoro/casamento com sua agente Helen (Miriam Shor), em uma noite de divulgação de seu mais novo romance (o quarto de uma trilogia, em perfeita e ferina descrição desse tipo de literatura) em Dallas e seu retorno para Albuquerque, tudo parece transcorrer como um plano sequência único, hipnotizante, daqueles que o espectador não consegue desgrudar os olhos diante do inusitado da coisa, do cuidado de Gilligan em seu trabalho magistral de direção e uma atuação de Seehorn que poderia ser descrita como a personificação da inquietude raivosa até que o que acontece no episódio efetivamente acontece e a atriz passa a acrescentar desorientação, estupefação e desespero em cima de uma construção de personagem já consideravelmente completa, obtida em um estalar de dedos.
A quebra desse plano sequência que não é plano sequência, obviamente, estando mais para um “quase” fluxo de consciência audiovisual, vem quando Carol finalmente chega em casa e o freio de mão narrativo é puxado de maneira que ela literalmente (mesmo!) ganhe uma explicação didática, com direito a gráficos, de como ela chegou no ponto em que está e como, para nós, o começo de ficção científica conversa com a continuação de horror e, por fim, aterrissa no colo de uma escritora descontente com sua profissão. Gilligan poderia ter arrumado outra maneira de encaixar as peças em seu quebra-cabeças, mas minha impressão é que ele simplesmente queria mostrar que não é a explicação que importa. Ao contrário, o que ele queria era se livrar disso logo, pois os acontecimentos desse começo parecem apenas e tão somente formar o trampolim para o que vem em seguida e que eu não posso imaginar o que possa ser, aliás. Na cabeça do showrunner, é melhor resolver isso da maneira mais prática e objetiva possível para que não restem dúvidas e ele, então, finalmente, possa tratar de realmente contar sua história. Com pelo menos duas temporadas, já que isso fez parte da negociação para a aquisição dos direitos pelo Apple TV, Pluribus, nesse começo, por melhor que o piloto possa ser como piloto, não parece ter substância suficiente para ser uma série. Diria que nem mesmo uma minissérie. Mas Gilligan é Gilligan e, mesmo quando falhou em capturar o imaginário popular nas séries em que tropeçou, ele entregou mais do que a média dos criadores de séries originais por aí. Agora é esperar para ver se o segundo episódio já justificará o formato escolhido para Pluribus ou se teremos que esperar mais para que essa intrigante mistura de ingredientes se torne uma refeição completa.
1X02
Moça Pirata

- Há spoilers a partir daqui.
Moça Pirata começa no inconfundível estilo de Vince Gilligan em trabalhar sequências introdutórias de pessoas ou situações. O que ganhamos são quadros cuidadosamente compostos e silenciosos em que vemos uma mulher no Marrocos na missão de coletar os corpos das pessoas que morreram quando a pandemia alienígena tomou o mundo. Ela é ajudada por um homem que chega com um caminhão frigorífico e, depois, é rendida por outro homem em uma motoneta, com a mulher usando o transporte de duas rodas para dirigir até o aeroporto e, sem piscar, embarcar em um Hércules C-130 em direção a Albuquerque, no Novo México, onde joga fora sua roupa surrada, toma banho e vai até a casa de uma Carol que está no processo de enterrar Helen no jardim. É como ver Breaking Bad ou Better Call Saul, mas em um universo estranhíssimo, ao mesmo tempo angustiante e fascinante.
Não demora nada para Carol perceber que Zosia (Karolina Wydra) foi escolhida por ser a “versão” feminina do pirata de sua série de romances de fantasia que originalmente seria mesmo uma mulher, mas que teve o sexo trocado para potencialmente evitar especulações sobre a sexualidade da autora, já que isso é claramente um assunto mal resolvido em sua vida. Mas essa conexão, no lugar de criar o efeito desejado, enfurece Carol que, então, berra com Zosia, levando-a a uma espécie de estado convulsivo que é replicado por todos aqueles que fazem parte da mente coletiva e que causa mortes inadvertidas aos milhões. Essa é uma revelação interessantíssima, ou seja, a quebra da serenidade da mente coletiva é causa para seu “mau funcionamento”, como um mecanismo de autodefesa que parte da chantagem emocional para evitar que os poucos que estão de fora da comunidade tenham reações extremadas.
Quando a situação se acalma, o episódio então muda completamente, pois Carol é levada até Bilbao, na Espanha, para conhecer os outro cinco humanos que ainda mantém sua individualidade e que sabem falar inglês para evitar intermediários na tradução. Mas a mudança vai além da locação, bem além. Gilligan, sem nenhum esforço, leva o espectador a crer que, agora, com Carol encontrando-se com outras pessoas isoladas como ela, uma espécie de rebelião ou contra ataque será pelo menos aventado, por mais improvável que ele possa ser. No entanto, o pequeno grupo que Carol encontra é passivo, quase tão assimilado à mente coletiva quanto aqueles que efetivamente fazem parte da mente coletiva. Seria esse um recado do showrunner sobre nossa tendência a encontrar conforto na homogeneidade de pensamento? Afinal, mesmo que um do grupo aproveite a oportunidade para viver uma vida hedonista na esbórnia, exigindo ser transportado pelo Air Force One, o avião presidencial americano e ter um harém de belíssimas mulheres, efetivamente transformando-se em um estuprador, outra – uma mãe – recusa-se a enxergar a realidade dos fatos e agarrasse ao conforto de sua negação completa e absoluta sobre o que está acontecendo, com outra ainda ativamente desejando fazer parte da mente coletiva.
Não tem muito tempo, Gilligan fez de um vilão terrível um personagem que muita gente por aí defendeu e ainda defende com unhas e dentes, chegando a esbravejar e a condenar aqueles que gravitam ao seu redor, como sua esposa e seu parceiro no crime. Agora, Gilligan faz algo semelhante, mas em escala muito maior e pergunta o que preferimos, um suposto paraíso sem a maldade humana, mas também sem nenhum traço de individualidade ao preço de quase um bilhão de vidas ou o nosso bom e velho inferno na Terra em que nossas decisões são nossas, assim como as consequências dessas decisões, doam a que doer. De minha parte, posso muito facilmente dizer que, com base nas informações fornecidas na série até agora, eu achei foi pouco Carol só dar dois ataques de fúria durante o episódio, pois eu acho que eu teria facilmente matado umas 400 milhões de pessoas da mente coletiva com o que eu faria no lugar dela, e isso sem contar com o que a mãe que se recusa a enxergar o óbvio e o “xeique francês” egoísta e aproveitador merecem.
Por outro lado, ao fazer o que fez, ou seja, ao subverter as expectativas sobre o encontro de Carol com os demais imunes, Gilligan mais uma vez não me deixou entrever como Pluribus pode ser uma série e não, quando muito, apenas um filme. No entanto, diferente da sensação de estar completamente perdido ao final do primeiro episódio, agora o que senti foi meu interesse ser aguçado justamente por não conseguir imaginar o que está por vir. Por maior que seja a oferta de séries variadas e de alta qualidade hoje em dia, ainda são raras aquelas que não iluminam o caminho que será trilhado e Pluribus não só não ilumina nada, como ainda nos dá rasteiras. Mal posso esperar pela semana que vem!
Pluribus – 1X01 e 02: Nós Somos Nós / Moça Pirata (Pluribus – 1X01/02: We Is Us / Pirate Lady – EUA, 07 de novembro de 2025)
Criação e showrunner: Vince Gilligan
Direção: Vince Gilligan
Roteiro: Vince Gilligan
Elenco: Rhea Seehorn, Miriam Shor, Peter Bergman, Blair Beeken, Karolina Wydra, Samba Schutte, Menik Gooneratne, Darinka Arones
Duração: 56 min. (1X01), 62 min. (1X02)
