- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios.
Quando Carol pegou o telefone pela primeira vez em Tem Leite, e, no lugar de uma alegre e solícita voz dos pluribus, ouviu uma longa mensagem de secretária eletrônica dizendo que eles precisavam de espaço, mas que os sentimentos deles sobre ela não mudaram e que era para ela deixar seu pedido que eles fariam o possível para atendê-lo, confesso que tive que pausar o episódio para parar de rir com calma e, sobretudo, para notar o quão genial foi essa tirada do roteiro que acontece reiteradas vezes ao longo do capítulo sem perder a graça e que é coroada com os drones atrapalhados como símbolo do distanciamento da mente coletiva de Carol, depois que, claro, a cidade inteira foi evacuada(!!!) em outro momento absolutamente incrível. Mais ou menos sete bilhões de pessoas basicamente fizeram como as redes sociais e ficaram irritadinhas e cheias de “não me toques” só porque não concordaram com a atitude de uma pessoa que não estava fazendo mais do que seria naturalmente esperado de alguém em uma situação como aquela. Pelo visto, os E.T.s que mandaram a fórmula espacial de apagamento do livre arbítrio deixaram de fora o espírito esportivo ou a capacidade de lidar com uma situação contrária ao que pensam sem baterem os pezinhos e se jogarem no chão como crianças fazendo show para os pais que acabaram de negar à elas o doce em uma loja.
E essa situação muitíssimo bem sacada é como uma fonte ininterrupta de satisfação, pois ela não só deflagra um sensacional episódio “mudo” que estuda o completo isolamento de um humano e que abordarei logo a frente, como nos oferece uma peculiar voz no recado da secretária eletrônica. Alguém pegou na hora, sem conferir depois? Pois o recado vem de ninguém menos do que Patrick Fabian, o advogado Howard Hamlin, de Better Call Saul, chefe da própria personagem de Rhea Seehorn por lá. Não só a escalação foi perfeita em razão da voz de âncora de telejornal que ele tem, como, descobri em seguida, tudo foi feito na encolha, sem conhecimento prévio de Seehorn que foi genuinamente surpreendida, durante as filmagens, ao ouvir a voz do colega de seis temporadas de série. Nada como um easter egg realmente bem pensado e executado, bem diferente das bobagens infinitas que virou o padrão idiotizante da Hollywood recente, não é mesmo?
Sobre a mente coletiva, o que mais posso dizer? A união de bilhões em busca de um “mundo melhor”, da “otimização do uso de recursos” e tudo mais que, lá no fundo, inesperadamente (mas talvez nem tanto) resulta em não mais do que adolescente birrento todo contrariado, algo que é a absoluta perfeição para ironizar a Humanidade. Sim, somos todos adolescentes birrentos em potencial. Basta que alguém ache o botão certo para apertar que revertemos a esse estado infantiloide que, de reflexo, tenta solucionar tudo cruzando os braços e fazendo biquinho. Mas calma que aqueles que estão achando que eu eu estou “atacando” a mente coletiva apenas – não façam biquinho!!! – precisam só esperar um pouco, pois eu sequer comecei a falar da própria Carol, a mulher constantemente de mal com o mundo mesmo antes da coletivização mental, que queria distância de humanos, não aguentava seus leitores que, para ela, não passavam de completos parvos que gostavam da bobagem que ela escrevia unicamente para ganhar dinheiro, sem obter qualquer sensação de prazer ou de realização profissional. Essa escritora de renome, autossuficiente, que odeia a União, é a primeira a ficar desnorteada quando ela finalmente consegue o que quer: ficar sozinha em seu canto.
Carol pega o telefone e ouve a secretária eletrônica, confere o êxodo pluribiano da cidade e, como todo falso ermitão, basicamente se inquieta, para não dizer que se desespera como outro tipo de criança, aquela que ganha um brinquedo que queria muito e que, nem 10 minutos depois, já largou ele de lado, perdendo totalmente o interesse. É por isso que a gag da secretária eletrônica funciona tão bem ao longo do episódio, pois não só ela é reflexo da constância com que Carol precisa de ajuda, deixando evidente sua dependência que depõe contra sua vontade de se isolar, como por vezes Carol parece ligar mais pela chance de ouvir uma voz humana que não seja a dela do que por qualquer outra razão. Mas seu mergulho investigativo é interessante também, uma continuação direta do interrogatório de Zosia sob influência do soro da verdade que a leva a incrementos de revelações até uma descoberta que a espanta e, claro, leva ao cliffhanger “safado” que nos faz salivar pela próxima semana.
Na prática, acho perfeitamente possível dizer que Tem Leite é o primeiro episódio mais claramente funcional de toda a temporada até agora, com o objetivo claro de impulsionar a narrativa sob um semblante menos filosófico – ainda que, claro, essa pegada esteja fortemente presente – e mais prático, mais direto, que leva Carol do ponto A ao B e então ao C, em belamente fotografadas sequências de mergulho em lixeira, investigação de supermercado e incursão em fábrica, tudo sob uma atmosfera fantasmagórica de uma cidade completamente vazia como muitos de nós vivemos ao vivo e a cores no começo da pandemia de COVID. Mas Carol não está sozinha. Suas noites são assombradas pela presença de uma matilha de lobos – que eu enxerguei, talvez procurando significados demais, mas eu não consigo evitar, como uma representação do lado mais sombrio da mente coletiva – primeiro revirando suas lixeiras, o que dá azo ao momento “drone no poste” que não sem querer ecoa muito a “pizza no telhado” de Breaking Bad e, depois, de maneira desesperadora, tentando “exumar” o corpo de Helen para fazer uma refeição de partes humanas não tão frescas, mas ainda, aparentemente, apetitosas. Novamente, Carol precisava de ajuda, mas, percebendo que drones não resolveriam, pelo menos não na urgência necessária, ela mesmo arregaça as mangas e, com pedras pesadas, cria um memorial para sua esposa, de certa forma dando um fim a essa linha narrativa.
Ultrapassando a metade da primeira temporada, Pluribus ainda tem muito o que mostrar, ainda que não exatamente a explicar, pois tenho para mim que não haverá respostas a tudo e eu nem as quero. O que importa mesmo são as discussões que a série coloca, a meditação que ela torna possível. Quem realmente somos sem a coletividade? E, não ironicamente, quem realmente somos sem livro arbítrio? Uma vida realmente solitária é uma vida ou é, apenas, sobrevivência? E em que momento a felicidade ou a busca por ela efetivamente precisa ganhar destaque em nosso cotidiano? A situação extrema de Carol é perfeita para, talvez, entendermos um pouco mais de nós mesmos e de nossa conexão com o mundo. E, claro, o piti da mente coletiva é a versão extrema de uma de nossas piores características, a incapacidade de enfrentar uma situação adversa de peito aberto. Mas o mais importante é descobrir se Patrick Fabian aparecerá na série como mais do que apenas uma voz incorpórea!
P.s.: A indiana Laxmi continua uma imbecil completa.
Pluribus – 1X05: Tem Leite (Pluribus – 1X05: Got Milk – EUA, 26 de novembro de 2025)
Criação e showrunner: Vince Gilligan
Direção: Gordon Smith
Roteiro: Ariel Levine
Elenco: Rhea Seehorn, Karolina Wydra, Patrick Fabian, Menik Gooneratne
Duração: 45 min.
