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Crítica | Poema (Uta, 1972)

Mundo em desvanecimento.

por Pedro Roma
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‘’Homenagem aos Vajras onipresentes!

Ó Violento, e de grande ira! Destrua! hûm trat hâm mâm’’

Mantra de Fudo Myoo, um dos cinco Myo-o, ou senhores da luz no budismo japonês

Chegamos, com Poema (Uta, 1972), à parte final da trilogia budista de Akio Jissoji. Nessa obra, podemos conferir a junção dos temas trabalhados nos filmes anteriores (como violência moral, física e sexual) com uma profunda análise acerca da decadência da antiga sociedade japonesa em meio ao avanço do capitalismo ocidental, assim como da perversidade e vacuidade presentes nos valores que buscam suceder às tradições nipônicas anteriores, onde o hedonismo surge como resposta ao desencantamento de mundo proporcionado pela lógica industrial, como quando uma enorme floresta e seus habitantes, sejam os vivos ou os mortos, se torna apenas mercadoria a ser especulada, onde tudo se torna mercadoria, inclusive a própria família.

A trama se passa quase toda em uma das casas da família dos Moryama, onde Jun (Pureza, em tradução livre) trabalha como servo de Yasushi (Shin Kishida) e de sua esposa Natsuko (Eiko Yanami). Levando uma vida ascética, quase como um monge, Jun (Saburo Shinoda) se vê como um protetor daquela família, de sua propriedade e honra. Não raramente, ele caminha até um cemitério cheio de lápides nas montanhas para anotar os nomes dos mortos já esquecidos pelos próprios parentes, e à noite, ele os escreve como poemas na esperança de reatar a harmonia perdida. Por outro lado, o filho mais velho da família é um advogado de relativo sucesso, mas que se vê incapaz de enfrentar o próprio Pai para poder vender a casa onde ele mora com a esposa, assim como de transar com ela. De forma a completar o núcleo principal, temos ainda o estudante de direito Wada (Ryo Tamura), que tem um romance com a empregada da casa, Fujino (Hiroko Sakurai). 

A narrativa se inicia com a apresentação das terras montanhosas da família, em planos longos e abertos, de modo não somente a nos ambientar como também dar toda a atmosfera do filme. Logo de cara, ao conhecermos os personagens, notamos que há um grande problema de confiança pessoal em Yasushi, o dono da casa. A todo momento ele está relutante e vacilante, nota aqui para a excelente performance física de Kishida. Com o avançar da trama, somos apresentados ao seu oposto complementar, Jun, tão certo de sua missão pessoal em defender os Moryama que chega até mesmo a realizar rondas noturnas diárias para garantir que não haja nenhum foco de incêndio inesperado na casa. Ele está tão absorto em seu caminho que deixa até mesmo seu patrão na mão, sem saber utilizar corretamente uma foto copiadora, pois seu horário de recolhimento havia chegado. Aqui, habilmente, o roteiro de Toshirô Ishidô traça os arquétipos contrastantes fundamentais dessa trilogia: fé contra niilismo, busca espiritual contra hedonismo, a harmonia do homem com a natureza se contrapondo à entrega humana a seu aspecto mais bestial e egoico. Dessa forma, podemos dizer que sempre há um questionamento direcionado ao espectador: afinal, onde podemos encontrar a compaixão perdida nessa existência senão em nós mesmos? Somos assim provocados, a todo momento, a encontrar beleza no horror que estamos contemplando.

Sendo o mais moroso das três obras analisadas, Poema requer do seu interlocutor um pouco mais de paciência para que os temas abordados criem um conflito verdadeiramente intenso, o que se dá somente após a chegada de Toru (Eishin Tôno) irmão mais novo e mais perverso, que passa a morar na residência após Yasushi decidir abandonar o local depois de descobrir que sua esposa o traiu com Jun, mesmo contra a vontade desse, ameaçando sujar o nome dos Moryamas ficando com homens de fora daquela casa.

Toru representa o que há de pior na sociedade da época, é um homem egoísta e autocentrado, que crê no hedonismo como uma forma ética de viver, por exemplo, ele paga casais de transeuntes para fotografá-los transando e não se importa em quase violentar a ex empregada da casa quando essa tenta extorqui-lo. Isso o coloca de encontro contra Jun em sua forma oposta de viver, ele se nega a seguir as regras impostas pelo irmão mais novo da família Moryama, mas Toru, se aproveitando da devoção ascética de Jun, impõe restrição alimentar total a ele, o que quase o mata, sendo salvo apenas pelo retorno de Yasushi a casa. Nessa parte da trama, somos informados de que Jun é também membro da família, fruto de um caso entre o patriarca e sua empregada, e que vai ficar com uma terça parte das terras do seu desconhecido pai quando esse vier a falecer.

Em uma sequência bastante pessimista, a obra desvela ao espectador seu ethos final: ao questionar ambos os irmãos Moryama o protagonista percebe que sobre eles recai um vazio existencial completo, que para eles tanto o Japão como o resto do planeta jazem em uma decadência imutável, que não vale nem mesmo o esforço para tentar mudar esse fato, de tal maneira que a vida se tornou um sonho inescapável, e que mesmo o suicídio não passaria de um devaneio se fosse cometido, algo próximo à postura dos antagonistas anteriores de toda trilogia budista. Assim, Jun, catatônico pelo que acabou de escutar, peregrina pelas montanhas buscando retornar a casa de sua mãe, porém, nos seus passos finais na escadaria da propriedade, seu corpo vacila e ele cai morto, com uma expressão assustadora, em pavor diante de um mundo  distante do Absoluto que ele tanto busca.

Nessa parte final de sua trilogia, Jissoji amarra as pontas temáticas apresentadas já em This Transiente Life de forma a dar sentido a experiência histórica de um Japão emerso em contradições, onde tradição e modernidade a todo momento lutam entre si, em que a perda de sentido existencial e o esquecimento da ligação entre homem e natureza imperam. Não devemos, contudo, imaginar que a obra se propõe a enxergar de forma conservadora o passado desse País, toda a decadência moral e violência sexual sempre estiveram lá, contudo, em vista do profundo desencantamento de mundo e instrumentalização do ser ocorridos no século XX, restou apenas recorrer aos Budas Furiosos em busca de um novo Dharma, em busca de um novo caminho em direção ao Absoluto perdido, em busca de um novo Sentido, maior que tradições inertes e materialismo passageiro.

Poema (哥, Uta, 1972)
Direção: Akio Jissoji
Roteiro: Toshirô Ishidô
Elenco: Saburô Shinoda, Eiko Yanami, Ryô Tamura, Hiroko Sakurai, Shin Kishida
Duração: 119 minutos

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