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Crítica | Poeta (2021)

Carta de amor aos poetas, o veterano Darezhan Omirbayev volta a usar de um protagonista que perambula como um estranho pelo mundo moderno.

por Michel Gutwilen
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Sabendo que o diretor cazaque Darezhan Omirbayev era um nome celebrado entre colegas cinéfilos há um bom tempo, quando foi anunciado que seu novo filme estaria na edição de 2022 do Olhar de Cinema, tentei aproveitar a oportunidade para assistir a um longa anterior de sua filmografia ainda desconhecida por mim. O único que consegui ver foi o maravilhoso exercício bressoniano Tueur à gages, de 1998. Sua história acompanha um homem que causa um leve acidente de carro e, para reparar o dano, entra em uma espiral de endividamento em sua busca por dinheiro. Com um protagonista silencioso, Omirbayev faz da jornada de desgraça daquele homem uma oportunidade para refletir sobre o meio predatório e sem saída que é o capitalismo global para a classe econômica de baixa renda. Em, 2022, com O Poeta, o seu protagonista possui um papel similar no mundo ao seu redor, mas com o diretor trocando o foco da economia para a arte. Atividade com risco de extinção, que parece a cada vez menos ter espaço e visibilidade no mundo físico, ser um poeta ou escritor em tempos de tecnologia e do business faz daquele indivíduo, artesão das palavras, quase que um corpo estranho no universo. 

Poeta, assim como O Trio em Mi Bemol, outro selecionado para o Olhar 2022, é um filme bem alienígena do resto do que vi em um festival marcado por obras de cineastas jovens tentando encontrar seu olhar para o mundo através da câmera ainda intuitivamente, na base do erro e acerto. Em contrapartida, os diretores Darezhan Omirbayev e Rita Azevedo Gomes são cineastas experientes que possuem certeza do que querem contar e como fazer isso, verdadeiros mestres da mise-en-scène, o que se comprova a cada plano e como eles vão se organizando a montagem de seus filmes. Por isso, em Poeta, a câmera de Omirbayev é também uma caméra-stylo (câmera-caneta), que imprime nas imagens do filme uma continuidade na ode à arte, pela maneira como permite que a luz e sombra entrem nas imagens, como faz movimentos de câmera que estão sempre dizendo algo — a pan do quadro para a mão na primeira cena; o tilt para o sapato ou, ao fim do filme, na árvore — e enquadra seus personagens nesses espaços. Portanto, a poesia continua pelo Cinema.     

O protagonista no presente cumpre a mesma trajetória de seu par em Tueur à Gages, servindo praticamente como um espectador interno, que olha para o que se tornou a sociedade de seu tempo. O que Omirbayev faz é botar um personagem diante de tudo aquilo que ele considera estranho no mundo, oferecendo ao espectador uma possibilidade de identificação, como se não bastasse apenas mostrar o que acontece, mas precisasse de alguém que reagisse a tudo aquilo (procedimento muito comum na comédia, um gênero que o filme flerta), oferecendo um contraplano reativo. Assim, são várias “esquetes” absurdas que brincam com esse deslocamento do protagonista: quando ele vê que o amigo da faculdade de artes virou empreendedor, quando vai em uma fábrica moderna e encara mafiosos, quando se depara com as novas tecnologias na loja de carros e de celulares/televisões, quando vê pela janela uma pessoa sendo agredida na rua sem motivo, ou quando olha a família do político chorando vendo alguma bobagem na televisão. 

Talvez exatamente por existir em contraste a todos esses momentos de estranheza, a melhor cena (não só do filme, mas de tudo que vi no festival e no ano) é aquela em que a mulher se mostra a única espectadora do poeta e recita um poema seu que lhe marcou. Trata-se da primeira vez no filme em que o protagonista não é visto mais pelo olhar do Outro, encontrando um olhar de admiração justamente por outra desajustada socialmente (pessoa com gagueira). Em um clímax emocional que não é no fim da história, é como se aquele momento fizesse sentir que toda a jornada até ali tivesse valido a pena, pois enquanto ainda houvesse uma pessoa interessada na arte e fosse atingida por ela, ela seria impossível de morrer. Sob as dificuldades impostas pela gagueira, a cena é especialmente forte e bonita porque mostra que mesmo sob as dificuldades de obstáculos materiais, quem ainda é interessado na arte, encontra um jeito de fazê-la sair e permanecer viva pelo mundo. 

Ao mesmo tempo em que a história se passa no presente, o que Omirbayev faz é um vai e vem entre sua narrativa e a ficção dentro da ficção, com os acontecimentos sendo interrompidos por uma segunda história sendo contada, que é a do livro que o protagonista está lendo, sobre um grande poeta da região cazaque. Este movimento possui como principal impulso um desejo de ficcionalização e a vontade de contar histórias, que ressoa com a grande intenção do diretor em homenagear a poesia e entende que, para manter as histórias vivas, é preciso concretizá-las, transformando-as em imagens — por isso há também sonhos no filme, uma outra forma de escapar da realidade. A partir disso, o filme vai chocando suas duas linhas temporais, que vão se aproximando por paralelos (como as cenas em que os mecenas ameaçam os dois poetas) e mostrando como que, com o passar do tempo, estão cada vez mais condenados ao esquecimento e serem guardados em um armazém escuro. A opção por escalar o mesmo ator no passado e presente cria justamente essa ideia de Poeta com P maiúsculo mesmo, como uma grande entidade que existe ao longo da história, que sofre a mesma desvalorização, que parece destinado a morrer e ser valorizado por poucos. Ao fim, resta apenas os artistas para lembrarem dos outros artistas. 

Poeta (Akyn, 2021) — Cazaquistão
Direção: Darezhan Omirbayev
Roteiro:  Darezhan Omirbayev
Elenco: Erdos Kanayev
Duração: 105 mins

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