Dez anos depois de estrear nos palcos, Ney Matogrosso voltou os olhos para sua trajetória artística e tentou brincar com ela, utilizando novas oportunidades tecnológicas e tendências de gravação daquele momento. Era 1983, o Brasil vivia os últimos suspiros da ditadura militar e fervilhava com os movimentos pelas Diretas Já. Nesse cenário de mudanças, …Pois é foi lançado como um álbum comemorativo que tentava equilibrar a ousadia artística com camadas de americanismo. O projeto já abre com a esquisita 10 anos… pout-pourri, uma montagem que espreme quinze sucessos da carreira de Ney em cinco minutos e meio. Cubanakan, América do Sul, Sangue Latino, Homem Com H e outros clássicos se misturam numa colagem que deveria celebrar a trajetória, mas soa como trilha sonora de Shopping Center. A culpa não é só do conceito pouco polido: a produção, carregada de teclados digitais, transforma essas pérolas da MPB em algo parecido com jingle publicitário, sempre com a mesma batida, cadência e atmosfera.
Começando o disco propriamente dito, a faixa-título, de John Neschling e Geraldo Carneiro, confirma o tom reflexivo do projeto. Ney navega pela melodia com maturidade, mas a cara padronizada da produção compromete a força poética que deveria ser o coração do disco. As coisas melhoram com Coração Civil, de Milton Nascimento e Fernando Brant. A canção fala de amor como resistência, tema que sempre funcionou bem com o intérprete, e os arranjos mais contidos permitem que a melodia de Milton brilhe sem exageros. Me Abrace Mais, de Jorge Aragão, introduz o samba no universo sonoro do álbum. Ney adapta-se ao suingue, mas há excessos musicais onde deveria ter simplicidade. Babalú, de Margarida Lecuona, entra nos territórios latinos que sempre fascinaram Ney. A interpretação explora a sensualidade da canção cubana e consegue algo interessante, mas não brilhante.
Pro Dia Nascer Feliz, de Cazuza e Frejat, virou um dos maiores sucessos do álbum e ajudou a projetar o Barão Vermelho nacionalmente. Ney pega a urgência juvenil da composição e tempera com sua maturidade interpretativa, criando uma versão que dialoga tanto com adolescentes quanto com adultos nostálgicos. É um dos momentos em que o álbum funciona de verdade. Cobra Manaus, de Eduardo Duzek e Luís Carlos Góes, traz uma narrativa amazônica carregada de simbolismo que sempre foi território fértil para Ney. A letra constrói imagens viscerais do Brasil profundo, e o cantor navega por essas águas com naturalidade. O problema é que mesmo essa canção mais orgânica não escapa totalmente da produção sem pé nem cabeça que domina o disco.
Bambo de Bambú, clássico de Almirante e Valdo Abreu dos anos 40, é outro ponto divertido que não cresce muito. Adiante, Marina Lima e Antônio Cícero contribuem com Fogo e Risco, uma das poucas faixas onde os instrumentos acústicos conseguem furar a parede de teclados. O sax tenor de Glen Garrett adiciona textura e humanidade ao arranjo, criando um ambiente sonoro mais interessante para a letra sofisticada dos parceiros. A faixa mais curiosa e engraçada é Calúnias (Telma Eu Não Sou Gay), paródia irreverente que conta com a participação de João Penca e Seus Miquinhos Amestrados. O humor debochado destoa do restante do álbum, mas funciona como alívio cômico necessário em meio a tanta solenidade enlatada. O álbum fecha com Até o Fim, de Chico Buarque, novamente gravada com os músicos americanos. A canção sobre amor e resistência encontra em Ney um intérprete firme, mas os arranjos californianos insistem em domesticar a força emotiva original da composição.
…Pois é documenta um momento delicado da carreira de Ney Matogrosso: o desejo legítimo de conquista comercial internacional esbarra naquilo que o tornou único. O resultado é um álbum competente, mas irregular, onde momentos genuínos de inspiração convivem com concessões que diluem o impacto final. Ney prova que sua voz continua extraordinária, mas o disco sugere que alguns caminhos para o sucesso podem ser armadilhas disfarçadas de oportunidades.
Aumenta!: Fogo e Risco
Diminui!: 10 anos… pout-pourri
… Pois é
Artista: Ney Matogrosso
País: Brasil
Lançamento: 1983
Gravadora: Polygram/Barclay
Estilo: MPB, Bolero, Pop, Rock, Música Latina
Duração: 37 min.