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Crítica | Preciosa: Uma História de Esperança

A dança dos desamparados.

por Fernando JG
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O primeiro ponto a ser pensado a respeito da obra de Lee Daniels é o seu esqueleto fílmico, que se trata de um enredo de amadurecimento. É doloroso constatar que embora não pareça, pelo constante sofrimento e drama cáustico que compõem a película, ainda assim trata-se de um cinema de formação, este que enfoca majoritariamente o protagonista num processo de descoberta, amadurecimento e emancipação. Aqui, em Preciosa, esse “crescimento” da protagonista parece se constituir em negativo, retirando todo o encanto e maravilhamento que é formar-se e torna-se quem se é. A heroína encontra-se encapsulada numa realidade aparentemente imutável e precisa conviver com a face mais dura e inescapável da vida. O que é pior do que a vida que Claireece Precious Jones tem? De fato, há muitas faces ruins da vida, e esta é provavelmente uma delas, senão uma das piores. 

Inspirado no romance Push, da autora norte-americana Sapphire, Precious elabora a história de amadurecimento de Claireece Precious Jones, uma garota do Harlem que com apenas 16 anos já tem vivido o pior da vida. Rejeitada no seu círculo social, motivo de piadas por sua aparência, abusada pelo próprio pai responsável por engravidá-la não uma mas duas vezes, desprezada pela mãe que a culpa por seduzi-lo, Preciosa, um nome que soa irônico pela fortuna da personagem, mostra-se tragicamente como um ser humano que vem ao mundo apenas para sofrer. Apesar de todos os males, coloca-se como excelente aluna numa escola regular, mas por conta de suas dificuldades no processo de leitura e escrita é logo enviada para um colégio que acolhe pessoas em situação de vulnerabilidade social. No novo colégio, ela então descobre que sempre há um novo dia depois da tempestade. 

Lee Daniels elabora constantemente a experiência do horror numa personagem jovem, maltratando-a, fazendo-a enfrentar situações limítrofes com postura de mulher adulta e madura. Toda vez que a vemos despida de juventude, somos cruelmente levados a vê-la não como uma menina que é, mas como alguém já em sua maturidade. E é aí que o cineasta novamente nos traz para a realidade ao revestir a protagonista em momentos de fragilidades típicas de uma adolescência, com sonhos, desejos e amores. Desse modo, o choque é ainda maior porque propositalmente são contrastadas duas realidades distintas que coabitam na mesma menina: aquela a qual ela é obrigada a viver, como mulher adulta, e aquela outra que é intrínseca a ela e a sua idade, isto é, a juventude. Uma sombra recai sobre o espectador e logo nos questionamos a razão de algumas vivências serem tão mais injustas e inviáveis que outras.

O nome que carrega, “Preciosa”, atua como uma espécie de ironia no sentido de ser o contrário daquilo que se é, mas ao mesmo tempo impulsiona o enredo a mostrar que a personagem também tem a sua magia, basta a oportunidade de mostrar o seu potencial. Preciosa poderia ser representada com a metáfora de um diamante não lapidado. Igualmente, o nome carrega uma sina maldita, uma espécie de tragédia anunciada num tom irônico, levando-a, assim como Antígona, a pagar pelo erro de seus pais: ela é o cabide que carrega toda uma estrutura de opressão e maldades e tem todas as suas experiências mais fundamentais enquanto ser humano arruinadas por uma formação corroída pelo ódio e desprezo dentro do núcleo familiar. 

A obra é elaborada em dois espaços essenciais: dentro e fora de casa. Em sua residência, Preciosa convive com o fantasma de um pai ausente, o qual nunca vemos em tela, senão por pequenos flashes das situações de abuso. Ausente, o pai não entra em cena e faz o papel que já estamos acostumados a presenciar. Além dele, a mãe abusiva, que a mata dia após dia com insultos inaudíveis. Dentro desse universo residencial, as cores são sempre insalubres, amareladas, escuras, opressivas, foscas, quentes, feitas para causar um efeito de desconforto e mostrar que nem sempre uma casa é um lar. 

O efeito buscado é excelente e representa o inferno que é viver num lugar cheio de problemas e abusos. Fora de casa, a paleta diversifica, perdendo a insalubridade, ainda que continue bastante sem vida. Através da manipulação da fotografia, o cineasta quer evidenciar o estado de alma da Preciosa, que parece não ter motivos para ver a beleza do mundo. Aliás, um outro aspecto importante é a narração em off, que é através da qual temos acesso ao interior e pensamentos da personagem.  

O texto é bem dramático e apelativo, e pelo que propõe como mensagem não teria como ser diferente. Exagera nas ações como maneira de buscar verossimilhança no conflito entre os personagens, mas traz resoluções que são próximas do real. Não acredito que o texto fuja do núcleo-duro que tenta discutir enquanto temas e trabalha isso de uma forma cruel. Não vejo outra maneira que não essa para enredar o processo de amadurecimento problemático da personagem. Por um outro lado, tem uma crueza dura que não comove no sentido catártico que conhecemos, mas mexe com os afetos do público, provocando raiva e piedade em algum nível. 

Destaco duas atuações acima da média: Gabourey Sidibe, no papel da Preciosa, responsável pela densidade dramática. Sua atuação é compromissada com o tipo de vítima que representa. Gabourey Sidibe manipula expressões faciais e corporais fundamentais para a sua personagem. Além disso, Mo’nique vulgo Monique Angela Hicks faz uma mãe abusiva que eu não tenho como colocar defeitos. Dissimulada e raivosa na medida certa, dialogando diretamente com o espectador. 

Agora, enquanto filme, mantém-se ótimo ao longo dos anos, mas envelhece em proposta estética, conferindo um gostinho de “imagem datada”, contudo, nada que seja ruim o suficiente para retirar da película a importância da sociologia da trama. No fim, a obra sabe criar tensão, nó e uma solução plausível para a sua principal vítima, fazendo-a sair de cena com dignidade. Não sei se é o caso de dizer vitoriosa, ou com triunfo, visto que é tudo muito sofrido, mesmo no desfecho. Vemos que, como um bom filme de formação, Preciosa sai da casa dos pais, emancipa-se e deixa uma mensagem forte de resiliência e, como na tradução brasileira, esperança. A obra canoniza-se sobretudo como um testemunho filmado de que nem toda casa é um lar, mas que é possível dar a volta por cima e reconstruir-se passo a passo em busca da liberdade. 

Preciosa – Uma História de Esperança (Precious, 2009, EUA)
Direção: Lee Daniels
Roteiro: Geoffrey S. Fletcher (baseado no romance Push, de Sapphire)
Elenco: Gabourey Sidibe, Mo’Nique, Paula Patton, Mariah Carey, Sherri Shepherd, Lenny Kravitz, Nealla Gordon, Stephanie Andujar, Chyna Layne, Amina Robinson, Xosha Roquemore, Aunt Dot, Angelic Zambrana, Quishay Powell, Grace Hightower, Kimberly Russell, Bill Sage, Jamie Foxx, Rodney ‘Bear’ Jackson
Duração: 110 min. 

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