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Crítica | Primavera em Casablanca

por Marcelo Sobrinho
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A Primavera Árabe constituiu-se de uma enorme onda de protestos ocorridos em diversos países do Oriente Médio e do norte da África a partir de dezembro de 2010. As motivações variaram muito de um país para o outro, mas algumas das pautas comuns foram as altas taxas de desemprego, que assolavam especialmente os mais jovens e a dura repressão política por parte de regimes autoritários. Governos foram depostos e guerras civis mancharam as ruas de sangue. Frente às manifestações que pediam maior democracia nos países islâmicos, os regimes contestados contra-atacaram. Aumentaram a repressão inclusive sobre os meios de comunicação independentes (que serviram, em grande medida, de arrimo para a organização dos protestos). Mais de sete anos após o espocar de toda essa ebulição, a situação política, social e econômica dessas nações ainda parece longe de uma solução.

O novo longa-metragem do diretor franco-marroquino Nabil Ayouch estabelece um poderoso retrato desse momento histórico dentro do contexto de seu país natal. O cineasta, além de dirigir seu filme com incrível sensibilidade, escreve o roteiro a quatro mãos com sua esposa e atriz que protagoniza o filme – Maryam Touzani. Juntos descrevem a vida de cinco homens e mulheres naqueles dias tão caóticos. Não o fazem em nenhum momento de modo panfletário ou monolítico. Não criam facilitações nem caem no terrível engodo de oferecer soluções prontas e acabadas para problemas tão complexos. O que o novo filme de Ayouch, em exibição no Festival Varilux de Cinema Francês de 2018, faz de melhor é trocar as lentes para revermos a situação em seu âmbito mais intestino. Primavera em Casablanca não é sobre bandeiras. É sobre vidas humanas que se misturam a um panorama político. É sobre como não se pode pensar a política sem compreender as histórias das pessoas atingidas por ela.

Ayouch é tão sensível para transmitir isso que um dos momentos mais estupendos de seu filme mostra a personagem Salima (Maryam Touzani) abandonando seu apartamento no exato momento em que a rua é tomada por manifestantes. A saída à rua é o ato que marca as duas fraturas – a da mulher contra o patricarcalismo que a sufocava e a da juventude contra a desesperança oferecida por um modelo esgotado de governo. Outro momento belíssimo registra a personagem em um close-up. Ela limpa o batom borrado em frente ao espelho enquanto o efeito visual o recompõe em seus lábios. A câmera não tem qualquer pressa. Demora-se no plano frontal. Quer que o público sinta o que Salima sente – a sua angústia convertida em resistência. Mais à frente, quando aviltada por um homem na rua por usar um vestido curto, ela o puxa mais para cima. Primavera em Casablanca é gentil com suas mulheres. Trata com cuidado das marcas que trazem em seus rostos (não faltam planos-detalhe nas tatuagens e nas rugas da anciã Yto e também na cicatriz de Salima) e sobretudo das que guardam em suas almas. A jovem Yto dirige seu canto de dor às montanhas em mais um momento glorioso.

Outro arco de Primavera em Casablanca que funciona muito bem é o do professor Abdallah (Amine Ennaji). É comovente o modo como a câmera acompanha seus passos apressados, saindo da sala de aula, para logo depois registrá-lo desabando em choro. Censurado por funcionários do governo e impedido de lecionar em berbere. O roteiro de Ayouch e Touzani reflete lindamente sobre o papel do professor – de que vale ensinar em um ou outro idioma se sua única serventia for nos silenciar? É incrível notar como nada parece fora do lugar no longa-metragem. Cada reflexão e cada conflito apresentado compõe um mesmo quadro e abre diálogo com os demais arcos dramáticos do filme. A pergunta de Abdallah vale para todos eles, afinal, a que se deve a situação crítica dos países islâmicos na atualidade se não à incapacidade dos homens de se entenderem, qualquer que seja a língua que falem?

A insurgência da juventude marroquina também não escolhe idioma e aparece nos versos de I Want to Break Free, da banda inglesa Queen, que o jovem marroquino Hakim ouve em seu fone de ouvido enquanto caminha pelas ruas de Casablanca. Ele sonha em ser um novo Freddie Mercury e seu canto a capella de We Are the Champions é uma das cenas mais emocionantes do filme. Outros traços de ocidentalização aparecem ao longo da projeção, ajudando a construir o panorama sócio-cultural do Marrocos atual. Completando o mosaico de personagens, uma adolescente de classe alta vive conflitos sexuais próprios da idade em uma sociedade em que a diversidade está interdita. Além dela, o dono de restaurante judeu Joe vive como um estrangeiro em sua própria terra, já que praticamente todos os judeus de Casablanca foram mortos ou tiveram que fugir para outras partes do mundo. Ao final, as cinco histórias de Primavera em Casablanca se conectarão sem artificialismos ou tentativas fajutas de comover o público. Esse resultado será obtido naturalmente.

A grua que desce sobre os rebeldes nos minutos finais de filme aguarda o momento exato para fazê-lo. Por mais que mal consigamos distinguir seus rostos ao cair da noite (com a fotografia escurecendo propositalmente), agora sabemos exatamente quem são. Através do quinteto de protagonistas, é possível não só conhecer o que reivindicam, mas também experimentar o seu sofrimento. O maior mérito de Primavera em Casablanca é aproximar o espectador, esteja ele onde estiver, de uma realidade geograficamente longínqua, mas humanamente muito próxima. O filme de Ayouch oferece a oportunidade tão única e valiosa de compreender aquilo que não se encontra em livros de História.

Primavera em Casablanca (Razzia) – Marrocos, 2018
Direção: Nabil Ayouch
Roteiro: Nabil Ayouch, Maryam Touzani
Elenco: Maryam Touzani, Abdelilah Rachid, Amne Ennaji, Arieh Worthalter, Dounia Binebine
Duração: 119 minutos

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