A história da sétima arte é pródiga em exemplos de realizadores que, na sua inegável mestria formal, confundem a complexidade da técnica com a profundidade da ideia, desenvolvimento e narrativa. Sandro Aguilar, no seu terceiro longa-metragem, Primeira Pessoa do Plural, abraça essa falha com uma convicção quase programática. O filme não se assume como uma exploração desafiadora do subconsciente humano; ele opera, antes, como um exercício de autodefesa autoral, em que a deliberada opacidade da narrativa serve de escudo contra a exigência de coerência e ressonância emocional. É um objeto cinematográfico mais preocupado em ser estranho do que em ser cinema.
O ponto de partida, o drama doméstico de um casal — Mateus, interpretado por Albano Jerónimo, e Irene, na pele de Isabel Abreu —, confrontado com o seu vigésimo aniversário e a presença distante do filho adolescente David (Eduardo Aguilar) é o mais próximo que a obra se permite da empatia. Contudo, essa fina camada de humanidade é imediatamente pulverizada pelo formalismo da encenação. A prometida tensão pai-filho manifesta-se em gestos que soam mecânicos, mais coreografados para a câmara do que sentidos pelos intérpretes. A emoção, aqui, é um artifício, tal qual um cinema vago torna-se, assim, dominante.
A ausência de uma continuidade lógica no filme, possível de ser celebrada como liberdade estrutural ou ousadia artística, não é senão o sintoma de uma gritante falta de disciplina de escrita, cuja responsabilidade recai inequivocamente sobre os nomes envolvidos no argumento e direção, neste caso Sandro Aguilar. Dizer que cada cena que vemos vale por si mesma é uma confissão elegante da incapacidade do guião em forjar um corpo coeso. Primeira pessoa do plural é uma redação malfeita por um aluno da quinta série. O espectador não está a ser convidado a descodificar um complexo quebra-cabeças; ele é, de forma mais crua, confrontado com fragmentos aleatórios de existências gélidas, que jamais encontram a cola emocional necessária para se transcender a meros elementos estilizados. A narrativa, ao se recusar a comunicar, cai no que pode ser poeticamente descrito como a vaidade do silêncio: o silêncio nem sempre é de ouro; neste filme, é apenas vácuo de nonsense.
O uso das alucinações e devaneios das vacinas como motor de toda a desestruturação temporal e de reencarnação de personagem representa o derradeiro artifício preguiçoso. É um atalho narrativo que dispensa o realizador de prestar contas à coerência interna ou, o que é pior, à ressonância da experiência humana. Em vez de abrir as portas do subconsciente com a complexidade de um filme lynchiano, a obra opta por fechá-las com a justificação simplista: Não precisa de fazer sentido, é uma alucinação! Este enquadramento meramente performativo do estranho transforma a confusão gerada não num enigma profundo que incita ao regresso, mas na frustração oca de ter sido testemunha de um realizador que se deleita na sua própria capacidade de ser crítico. A obscuridade, neste caso, é tratada como um sinônimo conveniente de profundidade filosófica, um engano que insulta a inteligência do espectador.
Paradoxalmente, a perfeição técnica do filme torna-se a principal cúmplice desta esterilidade emocional. A direção de fotografia de Rui Xavier absolutamente magnífica, com contrastes de luz que jogam na perfeição com a narrativa, e o som de Alessio Fornasiero, absolutamente perfeito também, não servem ao drama; antes, criam uma barreira de beleza fria e clínica. Esta maestria técnica, obsessiva na sua própria excelência, transforma o drama humano numa espécie de peça de museu, a ser admirada pela sua forma impecável, mas totalmente intocável pela sua substância. O som, pontuado ao extremo, e a imagem, controlada ao milímetro, reforçam a sensação de observação de seres humanos numa redoma asséptica. É o triunfo da estética sobre a emoção, no qual o objeto cinematográfico se torna o único e verdadeiro protagonista.
Os atores, incluindo os notáveis Albano Jerónimo e Isabel Abreu, e coadjuvantes como Jenny Larrue Eloísa D‘Ascensão, Tiago Aires Lêdo, Caio Amado, Alice Azevedo, Helena Estrela, Paula Tomás Marques e Marcelo Tavares, são as maiores vítimas deste formalismo excessivo. O trabalho de levá-los aos limites da sua representação não resulta numa revelação da verdade interior das personagens, mas sim na exigência de Sandro Aguilar para que funcionem como meros elementos estilísticos, quase fantoches na sua visão hermética. O drama subentendido, como a morte da filha que paira na narrativa, é um elemento atirado no fundo para dar uma falsa camada de melancolia a um vazio emocional, revelando-se manipulativo e não explorado.
A prometida análise profunda ao próprio ser humano nunca se materializa. A obra limita-se a reformular as questões mais elementares sobre identidade e existência — questiona-nos sobre a nossa própria existência enquanto pessoas — através de um filtro desnecessariamente complicado. A regressão temporal, o luxo e os excessos do final tropical são apenas variações sobre o mesmo tema da alienação e da perda de controle. A questão final é o clichê temático definitivo, envolto em tamanha fumaça estilística que qualquer resposta se perde no ruído. O filme falha em ser profundo porque confunde a complexidade da forma com a complexidade da ideia. A verdadeira arte reside na clareza da visão, não na névoa da execução.
Em última análise, Primeira Pessoa do Plural é um filme sobre a arrogância da autoria que, na busca por ser provocador, sacrifica a capacidade de ser comunicativo e linguístico. A beleza superficial da sua direção não consegue compensar o insustentável de seu conteúdo. Um filme que se assume como estranho para se proteger da crítica à sua incoerência merece a crítica que representa a sua desconexão do público, a sua falha em transcender a si mesmo.
Primeira Pessoa do Plural (First Person Plural) – Portugal, Itália 2025
Direção: Sandro Aguilar
Roteiro: Sandro Aguilar
Elenco: Albano Jerónimo, Isabel Abreu, Eduardo Aguilar, Carla Maciel, Cláudio da Silva, Cláudia Efe
Duração: 119 min
