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Crítica | Prisão (1949)

por Luiz Santiago
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Neste seu sexto filme, Ingmar Bergman teve pela primeira vez a oportunidade de dirigir um roteiro próprio, sem ser adaptado de peças de teatro, de outros enredos ou co-escrito por algum colega. Baseado em um conto não publicado do próprio diretor (um conto chamado Uma História Verdadeira, brincadeira com as tramas de folhetins dos anos 40, que faziam questão de usar a chamada “uma história real” em muitas de suas publicações), Prisão, lançado em 1949, apresenta uma série de primeiras vezes do diretor, o que faz com que muita gente classifique a obra como sendo o “verdadeiro primeiro filme de Ingmar Bergman“. E por mais que essa afirmação traga seus vícios, uma coisa é inegável: Prisão se parece muito mais com o que chamamos de ‘cinema bergmaniano’ do que os outros cinco filmes que o antecederam.

A história, escrita por Bergman durante o período de descanso, depois das filmagens de Porto (1948), não lhe é estranha, mas a forma como foi contada e as características centrais do texto já mostravam um bom amadurecimento do artista. Primeiro temos um filme dentro do filme, cuja produção é interrompida pela chegada de um antigo professor do diretor, que aproveita o horário de almoço da equipe para conversar com o ex-aluno sobre uma ideia, algo que ele acreditava que precisa ser filmado. Em resumo, levanta-se a possibilidade de o inferno ser a própria existência humana na Terra (que era o que Bergman acreditava, a esta altura). Este filme fictício traria, portanto, um domínio do diabo sobre o mundo — mais ou menos como a nossa versão machadiana em A Igreja do Diabo — e a humanidade veria que seu governo é exatamente como o de Deus. Segundo o professor, baseado na filosofia de Nietzsche, Deus está morto, derrotado. O homem, seus valores e as ciências é quem verdadeiramente dominam.

Daí passamos quase despreocupadamente para o núcleo de Prisão, a história de Birgitta Carolina (Doris Svedlund), uma prostituta de 17 anos que engravida e, por diversos motivos, tem sua filha retirada de si. Todos os elementos básicos da tragédia estão lançados desde muito cedo no filme, e se descontarmos a reticente passagem do Prólogo (cujo fim é marcado por um narrador que quebra a quarta parede e nos apresenta os créditos, em uma elegante evolução narrativa que o diretor já tinha usado em Chove Sobre Nosso Amor) e a terrível coincidência da reentrada do professor no final do filme, que estraga a cadência do texto naquele momento (e isto é algo que poderia ser resolvido com uma simples indicação de que eles estavam esperando o professor no estúdio), temos uma obra forte, com temática polêmica muito bem retratada e grande cuidado estético; a segunda melhor direção de Bergman até este momento de sua carreira, ficando levemente atrás de Chove Sobre Nosso Amor.

Ao longo do filme desfilam os chamados “pecados” cometidos neste “inferno na Terra”, rapidamente punidos ou pelo acaso ou pela culpa que os próprios pecadores sentem. O diretor enxerga a tragédia como um elemento natural, uma frágil membrana que às vezes é rompida e machuca os que estão diante dela. Da mesma forma é o mal, visto como um componente da humanidade, tal qual o bem. Notem que o roteiro torna a mitologia cristã parte da realidade, fazendo das forças místicas, impulsos humanos que podem ou não vir à tona em determinadas situações. Assim entendemos o por quê das desgraças e tremendo furor existencial que acometem os personagens de Bergman. É como se eles estivessem o tempo inteiro na linha tênue entre as duas forças, ora experimentando um lado, ora padecendo do outro.

A excelente interpretação de Birger Malmsten se destaca na película e ele dá vida a um personagem que de certa forma nos lembra muito os que vivera em Um Barco Para a Índia (1947) e Música na Noite (1948), homens atormentados que mesmo tentando disfarçar ou fugir de seus dissabores, acabam pegos indiretamente pelas desgraças do mundo. E notem que até na comédia slapstick dentro do filme, onde vemos a primeira aparição da Morte em um filme de Bergman, esse critério se mantém. Tais forças incontroláveis, sem regras e que a religião se recusa a acreditar que possam ter sido obra de Deus (atribuindo-as, portanto, ao Diabo) é uma das ironias propositalmente colocadas no filme e que problematizam ainda mais o destino trágico dos personagens.

Com uma sequência amplamente comentada — a bela, psicanalítica e perfeitamente fotografada e dirigida cena do sonho de Birgitta — e um final desalentador, Prisão é um grande soco de realidade no público. A obra pode ser utilizada para discutir aborto, suicídio, prostituição, conceitos de bondade e maldade, religiosidade, culpa, convenções sociais e cerceamento de liberdades individuais, dando a principal justificativa para o título, que apesar de ser claramente uma representação do estado mental e emocional da protagonista, nos dá a versão final do que é estar no inferno na Terra… uma eterna prisão, a despeito de todos os discursos de liberdade que se possa querer ou fazer.

Prisão (Fängelse) – Suécia, 1949
Roteiro: Ingmar Bergman
Direção: Ingmar Bergman
Elenco: Doris Svedlund, Birger Malmsten, Eva Henning, Hasse Ekman, Stig Olin, Irma Christenson, Anders Henrikson, Marianne Löfgren, Bibi Lindqvist, Curt Masreliez
Duração: 79 minutos.

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